segunda-feira, janeiro 04, 2010

SAÚDE

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO
FOLHA DE S. PAULO Editoria: Pág. Dia / Mês/Ano:
TENDÊNCIAS / DEBATES 01/JANEIRO/10

A face oculta da Aids

MAIS DE uma década após a chegada dos medicamentos que compõem o tratamento eficaz, a infecção causada pelo HIV ganha novos contornos, e a determinação de prolongar a vida a todo custo convive com situações que começam a preocupar pacientes e médicos.

Com mais de 30 drogas potentes disponíveis no mundo para combater o HIV, grande parte das pessoas em tratamento consegue manter por décadas o vírus em níveis indetectáveis na corrente sanguínea. As gravíssimas doenças oportunistas tornaram-se raras, e a mortalidade foi estabilizada em aproximadamente 30 óbitos por dia no Brasil.

A AIDS, no entanto, passou a revelar uma face oculta. Se comparados com a população que não tem o HIV, os indivíduos infectados -mesmo aqueles sob terapia antirretroviral bem-sucedida- passaram a ter problemas de saúde e doenças que nos surpreendem. São complicações não relacionadas diretamente à AIDS, e sim à replicação do HIV, ao permanente estado de atividade inflamatória e aos níveis de supressão imunológica aos quais os pacientes estão sujeitos.

Crescem os casos de câncer e de doenças renais, devido aos estragos perenes produzidos pelo HIV no organismo, mesmo após anos de controle do vírus com o tratamento. As doenças do fígado, igualmente em ascensão, estão associadas à coexistência de hepatites virais, ao uso abusivo de álcool e aos próprios antirretrovirais.

Precoces e mais frequentes, a hipertensão arterial, a diabete e as altas taxas de colesterol e triglicérides também acompanham a evolução da sobrevida dos indivíduos HIV positivos.

Os medicamentos deram a oportunidade de as pessoas viverem plenamente, e essas alterações recentes revelam que não conhecíamos a história natural da infecção pelo HIV em toda a sua extensão.

A longa exposição aos coquetéis de remédios, o envelhecimento dos pacientes e a complexa interação farmacológica com outras drogas usadas para tratar as "novas" doenças exigirão esforços de médicos de diversas especialidades e de equipes de saúde multiprofissionais.

É um cenário preocupante para o programa brasileiro de AIDS, que não expandiu no Sistema Único de Saúde (SUS) nem a solução de problema mais antigo, o tratamento da lipodistrofia -a redistribuição de gordura corporal que estigmatiza parte das 200 mil pessoas com HIV eAIDS tratadas com antirretrovirais no país.

Não apenas na assistência exige-se a atualização das respostas governamentais. Na outra ponta, na prevenção, é preciso recuperar o foco. O Ministério da Saúde erra ao reforçar a noção de interiorização da doença no Brasil, sem dizer que a ocorrência de casos nas pequenas cidades continua sendo irregular e de baixa magnitude. É preciso agir no interior, mas os grandes centros acumulam mais da metade dos casos de AIDS, e muitas capitais não têm programas à altura dessa concentração.

Pela primeira vez, pesquisas mostram a redução do uso de PRESERVATIVOS, e consolidou-se o aumento da incidência da doença em mulheres jovens e homens gays de 13 a 24 anos, para citar dois exemplos de populações vulneráveis e de prioridades esquecidas.

O governo federal repassa recursos para Estados, municípios e ONGs, mas a limitada cobertura dos projetos, a baixa execução orçamentária e a ausência de monitoramento demonstram os impasses da política descentralizada. O dinheiro público não chega ou não é gasto onde o HIV mais se propaga.

A cada mudança da epidemia, há o risco de a sociedade se distanciar ainda mais da compreensão da AIDS. A demora das políticas públicas em enxergar novas realidades pode significar mais infecções, prejudicar os doentes e gerar discriminação e violação de direitos, o que ainda persiste no trabalho, no convívio social e até em serviços de saúde.

Fosse diferente, não estaria em pauta na Câmara dos Deputados a aprovação de lei que criminaliza o preconceito contra as pessoas que vivem com HIV. As insídias da AIDS, certamente um dos mais complexos desafios da humanidade, não admitem hesitações e vacilos das autoridades.

* CAIO ROSENTHAL , médico infectologista, é membro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
* MÁRIO SCHEFFER , comunicador social e sanitarista, pós-doutorando do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, é presidente do GPV-SP.

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