domingo, agosto 23, 2009

RELIGIÃO - A Bíblia e a Homossexualidade


A Bíblia e a Homossexualidade
Onaldo A. Pereira


A Bíblia não tem muito a dizer sobre a homossexualidade, nas línguas em que foi escrito o termo (a palavra homossexualidade), não existe.
Toda vez que a prática da homossexualidade é mencionada ou é num contexto muito negativo, tal como adultério, promiscuidade, violência ou idolatria.
A atitude de condenação que muitos cristãos demonstram com relação as pessoa homossexuais provém de se ignorar esse contexto.
 
A DESTRUIÇÃO DE SODOMA E GOMORRA
DESCRITA EM GÊNESIS 19
Dois anjos em forma humana foram enviados a Sodoma e Gomorra e hospedados na casa de Ló, do qual fala o Novo Testamento como sendo "...justo. .. enfadado da vida dissoluta..."
Ló ofereceu aos anjos cordial hospitalidade, como era o costume, mas ficou chocado com o comportamento rude de seus vizinhos com relação aos hóspedes. Todos os homens da cidade, de todas as idades, rodearam a casa de Ló e exigiram que queriam ver os seus hóspedes, eles queriam conhecer os mesmos. (Gn. 19:05)
Alguns eruditos do Antigo Testamento não crêem que o intento dos homens de Sodoma fosse sexual, sendo que a palavra em Hebraico traduzida por conhecer pode significar simplesmente comunicação, (nesse caso um desejo de se examinar as credenciais dos visitantes estrangeiros). De qualquer maneira, os anjos foram tratados mal, com falta de hospitalidade.
Caso tenha havido intenção sexual o primeiro fato a ser ressaltado é o de que os homens de Sodoma não deveriam ser todos exclusivamente de orientação homossexual, no sentido em que o termo é usado hoje em dia. Provavelmente eram heterossexuais com a intenção de humilhar os estrangeiros, praticando atos homossexuais. A cidade para existir deveria ter entre seus habitantes pais e maridos, tendo em vista a manutenção da população. Sodoma definitivamente não era uma comunidade "gay". O que eles poderiam, nesse caso, estar querendo era cometer um estupro.
O estupro não é em si um ato sexual, antes um ato de violência. Devido à baixo nível em que as mulheres eram tidas, um dos costumes da época em referindo-se a humilhação de alguém era fazer do humilhado "a mulher", através do coito anal forçado. A ênfase aí é na demonstração de força e poder sobre alguém considerado fraco e vulnerável.
Os sodomitas não aceitaram as filhas de Ló como substitutas mulheres tinham pouco valor, não teria graça. (A própria oferta de Ló é um indicativo da pouca estima em que eram tidas as mulheres).
Humilhar mulheres não daria o mesmo sentimento de conquista que submeter os homens a seus caprichos.
Em face de tudo isso a história de Sodoma não se concentra na prática da homossexualidade, antes em dois outros fatos: 1º - estupro coletivo e, 2º - falta de hospitalidade.
Ninguém ousaria afirmar que, se pelo contrário os homens de Sodoma tivessem aceitado as filhas de Ló, Deus não os teria castigado pelo motivo de terem praticado atos heterossexuais.
A violência de forçar alguém a ter sexo com outro é o pecado desta história e não importa, tenha sido a vítima homem ou mulher, o mal é o mesmo. Se os anjos tivessem vindo a Sodoma como mulheres e tivessem tido a mesma recepção, o castigo de Deus teria sido igual.
Noutras passagens da Bíblia onde Sodoma é mencionada, nada se diz sobre homossexualidade, em Isaías capítulo 12, Judá é comparada a Sodoma e Gomorra. Os pecados citados como característicos de ambas são: religião vazia de espírito, avareza, rebelião contra Deus, falta de amor para com os órfãos e as viúvas etc., nenhuma palavra sobre sexo ou homossexualidade.
Em Ezequiel 16:49-50 "Eis que esta foi a maldade de Sodoma tua irmã: soberba, fartura de pão, e abundância de ociosidade teve ela em suas filhas; mas nunca esforçou a mão do pobre e do necessitado..." Aqui o maior pecado de Sodoma foi a indiferença para com o pobre.
No Novo Testamento, Jesus se refere à Sodoma não no contexto de sexo, mas sim de inospitalidade. Lc. 10:10-12.
Jd. 7 menciona os pecados sexuais de Sodoma como sendo "fornicação e terem ido após carne estranha." O que no texto grego dá a entender que sendo humanos cobiçaram anjos como objeto sexual. Assim sendo, fica claro que o pecado de Sodoma foi desprezo para com a dignidade do ser humano, cometendo violência, estupro, inospitalidade e a falta de compaixão para com os necessitados.
Hoje em dia o preconceito cruel contra pessoas homossexuais pode muito bem ser classificado como parte daquilo que nossa Sociedade tem em comum com os pecados de Sodoma, desumanidade.
 
AS PASSAGENS DE LEVÍTICOS
Os Cultos de Fertilidade entre os vizinhos de Israel empregavam prostitutos nos seus templos, visando atos homossexuais em seus rituais. O povo de Israel foi proibido de participar de tais coisas. Dt. 23:17-19; J Reis 14:24; II Reis 23:07. Dois textos do Antigo Testamento fazem referência direta a atos homossexuais. Lv. 18:22 "Com varão não te deitarás como se fosse mulher; abominação o é." e Lv. 20:13 "Quando um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão, e o seu sangue é sobre eles." Esses textos fazem parte do Código de Santidade de Israel, no qual se encontra mandamento proibindo comer carne com sangue, usar roupas feitas com dois tipos de tecidos (como exemplo: linho e seda), plantar duas qualidades de sementes no mesmo campo, fazer tatuagem etc. Além disso, dá instruções específicas a respeito de sexo.
As razões dessas proibições são várias:
1ª - Separação de outras nações e de seus costumes. Lv. 18:15;
2ª - Evitação da idolatria e de todas as práticas associadas com a mesma. Lv.20:01-07;
3ª - Impureza cerimonial.
As duas primeiras razões estão estreitamente relacionadas à proibição de "atos homossexuais", pois eram parte do culto de fertilidade da Palestina. A terceira razão tem a ver com toda emissão de sêmen (masturbação, polução noturna ou mesmo a menstruação impurificavam cerimonialmente o indivíduo) Lv. 15.
É possível também argumentar que a proibição aqui é de que homem se deite com homem como se fosse mulher; não diz nada a respeito do sexo entre dois homossexuais.
Se esses textos podem ser usados no século XX contra homossexuais, então deveriam igualmente implicar a condenação de quem come carne de animais impuros, usam roupa com dois ou mais tecidos diferentes, plantam feijão e milho na mesma lavoura, ou fazem sexo durante a menstruação da mulher. Homossexualidade feminino ou lesbianismo não é mencionados no código de santidade.
De acordo com o Talmude a única coisa que era proibido acontecer no sexo entre duas mulheres era a perda da virgindade.
 
ROMANOS 1º
O lesbianismo é mencionado apenas uma vez na Bíblia, o que agora nos trás para a discussão do primeiro capítulo de Romanos. Nesse capítulo Paulo, escrevendo para judeus e gentios, mostra como o pecado alienou de Deus todas as pessoas. Os gentios afastaram-se de Deus para os ídolos, os judeus tornaram-se egocêntricos, cheios de auto justiça e críticos, apesar de se gloriarem na lei. Rm. 02:23. Em outras palavras, todos nós pecamos e caímos da glória de Deus. Rm. 03:23.
O intento de Rm. 1º e 2º não é colocar em destaque alguns como sendo a pior categoria possível de pecadores, muito pelo contrário, é dizer que todos igualmente pecamos. Rm. 01:26-27.
Os pensamentos chaves parecem querer condenar a paixão desenfreada, desvio do que é natural e o desejo de se evitar conhecimento de Deus como sinais de decadência da sociedade da época.

NATURAL VERSUS DESNATURAL EM ROMANOS
Essa passagem não diz nada a respeito do amor homossexual. A ênfase está inteiramente na atividade sexual vivida num contexto de promiscuidade e idolatria.
Mas o que significa mudar o uso natural?
O que é considerado natural em uma determinada cultura é muitas vezes simplesmente um costume social aceito, e as vezes Paulo fala sobre natural nesse sentido. Por exemplo, em 1 Cor. 11:14-15; "Ou não nos ensina a própria natureza que é desonra para o varão ter cabelo crescido? Mas para a mulher cabelo crescido lhe é honroso, porque o cabelo lhe foi dado no lugar de véu."
A homossexualidade era bem aceito no meio social grego e romano e considerado natural.
A idéia atual de muitos cristãos é que a palavra natural tenha a ver com o corpo humano, tendo em vista as formas anatômicas: pênis-vagina. Na mente de Paulo, no entanto, natureza era algo bem mais abstrato. Por exemplo: Comparando Rm. l.º com 1 Cor. 11 seria lógico inferir, seguindo esse tipo de lógica, que por ser desnatural, o cabelo não cresceria no homem, o que não é verdade.
Do mesmo modo que seria desnatural para um homem heterossexual ter sexo com outro homem seria desnatural um homossexual masculino fazer sexo com uma mulher. Essa seria uma conclusão correta do pensamento de Paulo.
Mesmo assim, destacar esse ponto da corrente dos argumentos de Paulo sobre o pecado da humanidade seria leviano. O que ele está condenando aqui é a dissolução reinante no mundo pagão, o domínio dos desejos sobre os sentimentos, ou mais claramente, a promiscuidade. E tudo isso num contexto estreitamente relacionado com a idolatria e a incredulidade. Paulo nem condena o paganismo em si, mas sim os seus frutos, idolatria, superstição etc.
 
O CONTEXTO SOCIAL DE ROMANOS 1º
Como no caso de Sodoma, o contexto era a inospitalidade e estupro, em Romanos o contexto é a idolatria e a promiscuidade. Nenhuma menção é feita por Paulo à orientação sexual das pessoas no sentido estrito da palavra, apenas combate manifestações corruptas da mesma.
Paulo tinha em vista as práticas da sociedade de sua época. Na Grécia era comum um homem ter uma mulher e ao mesmo tempo um jovem amante. Tal arranjo era considerado um suplemento do casamento reconhecido pelo Estado. Em Atenas a prostituição masculina florescia, chegando a ponto de provocar protestos da parte das prostitutas, as quais consideravam isto uma concorrência desleal.
Com relação a Roma, Paulo não é o único a expressar alarme diante do valor ali dado à sensualidade e a luxuria. Polybius reclamou da: "devassidão geral dos jovens romanos". A situação era triste, ele disse que muitos pagavam fortunas por um rapaz ou por um jarro de peixe defumado do Mar Negro. Depois ele cita Cato dizendo: "a degeneração do Estado é clara, quando rapazinhos custam mais que fazendas e jarros de peixe mais do que lavouras."
 
A NATUREZA
Outros ainda argumentam que natureza é um termo mais abrangente e chegam a dizer que entre os animais não se encontra homossexualidade, o que não é verdade. Entre os primatas os cientistas já comprovaram a existência de casais do mesmo sexo, vivendo juntos lealmente. O mesmo acontece com certas aves, peixes e outros animais.
 
ADÃO E EVA
O argumento de que Deus criou Adão e Eva macho e fêmea e que, dentro desse limite deve restringir-se todo relacionamento sexual é falso, pois ignora muitos fatos: 1º - A história do 1º capítulo de Gênesis é um mito semítico, o qual tem como única finalidade apontar Deus como o originador do Universo e não narrar os acontecimentos em detalhes. O texto é o resumo de uma tradição que possui muitas variantes. 2º - Adão foi criado macho e fêmea. Eva estava dentro de Adão, ela foi retirada para que um relacionamento pudesse ocorrer, com a mesma carne e o mesmo sangue. Antes Deus ofereceu a Adão os animais como possível companhia, ele não escolheu nenhum. Nesse caso, Adão faria sexo com o animal que tivesse escolhido?! A narrativa da criação não pretende definir orientação sexual. 3º - A Bíblia não diz se Adão e Eva eram brancos, amarelos, vermelhos ou pretos, ou se eram baixos, altos, fortes ou fracos, que língua falavam etc. Se tivermos que seguir o padrão Adão e Eva relacionado com sexo, então, deveríamos seguir o mesmo padrão com relação a todo o resto, raça, cor, língua etc. Teríamos para isso que descobrir qual era a raça e a cor deles, o resto da humanidade que não se conformasse a esse padrão, seria anomalia, transviada, doente e pária. Não é de admirar que muitos cristãos tenham decidido que a raça deles é a única pura, a que Deus criou e seguindo essa filosofia, perseguido e oprimido os de outra raça. Os crentes da África do Sul seguiram essa interpretação, Hitler também a seguiu. Se quisermos classificar as pessoas conforme o sexo, temos que ser consistentes, terminar a classificação, incluindo todos os outros aspectos possíveis. Por que só sexo?
 
OS OUTROS DOIS TEXTOS RESTANTES NO NOVO
TESTAMENTO QUE TRATAM
DE ATOS HOMOSSEXUAIS
I Cor. 06:10 e I Tm. 01:09-10.
A interpretação destas passagens depende de duas palavras gregas, traduzidas por João Ferreira de Almeida como efeminados e sodomitas. A intenção original do escritor parece ter sido salientar dois tipos de práticas homossexuais consideradas deploráveis e não condenar a homossexualidade em si. Quando os escritores do Novo Testamento condenam o adultério não estão proibindo o sexo de um modo geral.
A palavra traduzida por efeminado é malakoi a qual significa literalmente macio ou solto. Esta palavra era usada para designar pessoas moralmente relaxadas, sem controle e sem temperança. Por exemplo: alguém que a cada noite tem um parceiro diferente é malakoi, seja homossexual ou heterossexual. No inglês effeminate significava em 1600, quando foi feita a tradução King James, alguém que não consegue controlar o seu desejo por mulheres, o que em parte concorda com o grego original.
Outra palavra usada na epístola aos Coríntios e também em 1 Tm. 01:09-10, e traduzida por sodomitas é arsenokoitai. O significado desta palavra é difícil de se saber, porque além de rara é obscura. Ela é composta de koitai (literalmente, aqueles que fazem sexo) e arseno (literalmente, masculino ou macho). São Gerônimo em sua tradução para o Latim, no séc. IV, conhecida como Vulgata, traduz essa palavra por concubinos, o que corresponde a prostitutos.
Pais da Igreja, entre eles o grego São João Crisóstomo, não encontraram nenhuma referência a homossexualidade nessa passagem.
Se Paulo quisesse referir-se à homossexualidade em si, ele teria usado palavras como paiderastas, pallakos, kinaidos, arrenomanes e paidophthoros, as quais não são nunca encontradas no Novo Testamento.
 
CONCLUSÃO
Paulo foi um produto de sua época como não poderia deixar de ser, sendo humano como todos nós. Daí, é apenas normal encontrarmos em seu pensamento reflexos da sociedade em que viveu, mesmo que muitas vezes abrandados e modificados. Ele tinha uma certa repugnância por sexo, resultado de um ascetismo muito parecido com o estoicismo grego, e nesse ponto ele se desvia dos ensinos e práticas do Antigo Testamento, mostrando-se mais pagão do que judeu. Ele aconselha contra o casamento, 1 Cor. 07:25-49. A sua visão da mulher acompanha a da sociedade em geral, quando ele a coloca como perigo (verso l.º) "... bom seria que o homem não tocasse na mulher." Por que o homem não tocar a mulher e não vice-versa?
Elas eram para ser submissas aos seus maridos. Em 1 Cor. 11. Aí Paulo diz que a mulher foi criada por causa do homem (verso 09); e ela não podia falar na Igreja. Isso inclui cantar e orar se pegarmos o texto literalmente. 1 Tm. 02:10-15; 1 Cor. 14:34-35.
Do mesmo modo, Paulo aceita a escravidão e não diz uma só palavra contra a mesma. Col. 03:22 e, 04:01; Ef. 06:05-09; 1 Tm. 06:01-02; Tt. 02:09-10; Fl. Ele aconselha os escravos a serem obedientes e a não procurarem libertação. Aos senhores manda que sejam brandos. O mesmo Paulo, no entanto, lançou a semente da libertação, a qual levou os cristãos a acabarem com a escravidão e as mulheres a buscarem direitos iguais aos dos homens. Num certo sentido ele estava além de sua época e quando vemo-lo chamando de volta à ordem social vigente, parece que estava tentando remediar os estragos que ele mesmo havia causado na mesma. Como por exemplo em Corinto, a Igreja estava em pleno processo de libertação quando Paulo assustado, temendo as conseqüências refreia a tendência da Igreja e reafirma os costumes sociais do mundo antigo, como o véu para a mulher e o silêncio delas nas reuniões. O que estava acontecendo naquela Igreja deve ter escandalizado os coríntios pagãos e Paulo decerto julgou desnecessário atrair perseguição por causa de tais coisas.
Portanto, o caminho do cristão e da cristã é para frente, para maior libertação. Não libertinagem, é claro. Mas, o nosso não aos preconceitos de sexo, cor ou raça deve soar alto e firme.
Da mesma fonte vêm os preconceitos contra negros e homossexuais e todos os outros. Essa fonte é o desejo maligno e pecaminoso de domínio sobre os mais fracos ou a minoria.
Que Deus nos dê o espírito de Cristo e o seu amor infinito.
 

A POSIÇÃO DA IGREJA ATRAVÉS DOS SÉCULOS
A Igreja Cristã nem sempre teve clareza a respeito de como pensar ou tratar essa questão da homossexualidade. Houve épocas quando as Igrejas Católicas, Grega e Romana chegaram a celebrar liturgicamente a união entre pessoas do mesmo sexo, desenvolvendo para isso muitas liturgias ainda existentes conforme bem documentado pelo Dr. John Boswell, professor de História Medieval na Universidade de Yale nos EUA, no seu livro Same Sex Unions in Premodern Europe (Uniões de Pessoas do Mesmo Sexo na Europa Pré-moderna).
Essa prática, mais ou menos freqüente, continuou aparecendo dos primeiros séculos até os séculos XV ou XVI. Várias figuras importantes da Igreja ficaram conhecidas como envolvidas num relacionamento com alguém do mesmo sexo, havendo mesmo uma tradição que diz que os apóstolos Felipe e Bartolomeu formavam um casal, sendo depois quase sempre mencionados nas liturgias de união de pessoas do mesmo sexo. O casal de santos mártires Baco e Sérgio, o qual viveu durante o reinado do imperador Maximiano (286-306-8 a.D.), tornou-se exemplo de amor entre dois homens. A sua história é contada em detalhes em alguns documentos, sempre enfatizando o relacionamento romântico dos dois. A iconografia que retrata os santos Sérgio e Baco mostra os dois juntos como um casal, com Jesus no meio unindo-os, como era comum simbolizar a união de casais formados por um homem e uma mulher.
Outra celebração de união famosa é a dos imperadores bizantinos Basil I e Michael III.
Essas uniões entre pessoas do mesmo sexo eram tidas em alta conta, porque ao contrário dos casamentos heterossexuais da época, não envolviam negócios de herança, propriedade ou nome de família, eram baseados unicamente no amor.
A Igreja faria muito bem em resgatar essa bela tradição tão ricamente documentada por ela mesma através dos séculos.
 
A SOCIEDADE SECULAR
Assusta a ingerência das Igrejas nos afazeres do Estado quando esse tenta regulamentar a união entre pessoas do mesmo sexo. O que a Bíblia diz nesse e noutros assuntos tem pouca ou nenhuma relevância na organização da sociedade moderna, diversificada, plural e complexa como é.
No campo dos direitos humanos avançamos para além do previsto pela Bíblia, apesar de muitas vezes inspirados por ela, mas não só por ela. Muitos dos grandes defensores dos direitos humanos foram ateus, positivistas, panteístas, etc.
Se formos usar a Bíblia como fonte de leis e costumes mandatários para todos indiscriminadamente como querem muitos, teremos que aceitar a instituição da poligamia, da pena de morte, da escravidão branca e negra, da inferioridade e submissão da mulher e seu velamento, entre outras coisas. Está tudo na Bíblia. Existem grupos que defendem tudo isso, alguns até vivem em poligamia, por exemplo. Ora, Paulo apenas pede que o bispo seja marido de uma só mulher. A cristandade tornou-se monogâmica aos poucos e mais por influência da Roma pagã do que da Bíblia.
A escravidão é uma instituição aceita com a maior serenidade pela Bíblia, a qual inclusive aconselha o senhor a não ser muito bonzinho com seus escravos: "O escravo não se emendará com palavras, porque, ainda que entenda, não obedecerá. Se alguém amima o escravo desde a infância, por fim quererá ser filho." Prov. 29:19-21
Uma das epístolas atribuídas a Paulo no Novo Testamento é a Filemon, devolvendo um escravo fugitivo, Onésimo, o qual é convertido pelo apóstolo. Paulo primeiro queria ficar com ele (verso 13) mas considerando isso apropriação indevida (verso 14) devolve Onésimo agora como irmão, do também convertido Filemon, pedindo que o fato da fé comum seja levado em conta. Apesar de todo o palavreado piedoso o que tinha que ser feito, o que era honesto e "cristão" foi feito, o escravo foi devolvido ao seu legítimo dono, como irmão, mas ainda escravo para ser possuído para sempre (verso 15).
O padre Antônio Vieira teve que enfrentar a Santa Inquisição em Roma, entre as acusações contra ele estava a de ser contra a escravidão.
Durante a libertação dos escravos nos EUA as igrejas se dividiram, as do Norte a favor e as do Sul contra. Muita literatura foi produzida pelos Evangélicos do Sul defendendo a "divina instituição da escravidão e a predestinação por Deus dos negros à escravidão." Abolida a escravidão naquele país algumas famílias de evangélicos mudaram-se para o Brasil com seus escravos, onde podiam continuar "obedientes" à Palavra de Deus. Foram esses também, os Evangélicos do Sul, que mandaram grande número de missionários para o Brasil.
Sobre a Pena de Morte existe uma quase unanimidade no meio Evangélico a favor dela, como sendo instituição divina para a punição dos maus e citam Romanos 13 como justificativa, além do Velho Testamento, é claro; onde inclusive os homossexuais são condenados; "... serão mortos; o seu sangue cairá sobre eles." Lev. 20:13
Hoje ainda encontramos quem defenda tudo isso e lamente o liberalismo dissoluto da sociedade moderna. São poucos os que ousam verbalizar esse sentimento; dá, contudo para sentir latente o desejo de impor a moral bíblica. A moral bíblica até que ponto? Onde parar? Aí está a questão que mete medo, não apenas aos homossexuais, mas também às mulheres, artistas, escritores, políticos etc.
Aliás, o medo é interno, denominações temem denominações, pois uma acabará querendo impor a sua versão da moral bíblica.
O estado tem que se precaver contra essa possibilidade, tornar cada vez mais sólida a garantia de um espaço plural onde caibam todos.
A religião não tem nada a contribuir para o Estado? É claro que sim, naquilo que tem de universal e comum a todas as correntes cristãs e não cristãs, a compaixão, o amor, o valor dado ao ser humano e ao meio ambiente; temos muito a dizer profeticamente e, sobretudo a fazer. Estivessem as igrejas realmente preocupadas em praticar seus ensinamentos teríamos uma sociedade mais justa, igualitária e feliz. Cuidassem as igrejas de seus próprios membros e o panorama geral da sociedade seria outro bem mais positivo.
Para isso basta religião parar de coar mosca e engolir camelo, de colocar cargas pesadas demais sobre os outros, de fazer regras inúteis, de supervalorizar pontos doutrinários abstratos, de viver uma religiosidade egoísta e exibicionista, de dividir-se e subdividir-se escandalosamente, de ser anticristã e converter-se a Jesus.
Então, a homossexualidade já não será um tão querido cisco a ser retirado do olho do outro, estaremos ocupados com a trave imensa que obstrui a nossa visão e nos impede de ver a Verdade que liberta, o Amor que é maior que tudo e o rosto de Jesus em nossos irmãos e irmãs entendidos.
 
UMA PALAVRA AOS HOMOSSEXUAIS E LÉSBICAS
Acreditando no que têm dito de nós muitos se desviaram do bom caminho e entraram num crescendo de desfiguramento, perdendo a dignidade, o amor próprio e a capacidade de viver com outros. Nos guetos gays a qualidade de vida testifica da tragédia existencial na qual está mergulhada uma boa parcela de nossos companheiros.
Cultiva-se uma cultura da morte e da mentira a tal ponto que muitos chegam a confundir esse jeito de ser com o ser "gay", o que não é verdade em absoluto! A grande maioria dos homossexuais e lésbicas vivem inseridos em suas famílias e na sociedade em geral, de forma salutar e íntegra.
Infelizmente uma minoria faz a má fama de todos, aparecendo como inapelavelmente promíscua mentirosa e violenta.
Precisamos vencer o "veneno das bichas" com seu vocabulário pernicioso; coisas como chamar as mulheres de "rachas", considerar ato bonito "arrasar" umas com as outras, "dar na cara dela", "fazer a Elza", etc., o que é sintoma de algo muito triste!
Fala-se muito da violência contra homossexuais, contam-se os assassinatos de gays aos milhares, grupos constroem sua militância fazendo sensacionalismo em cima disso, (existe quase que uma tara por mártires, uma alegria mórbida quando um gay é assassinado; o qual vira imediatamente uma bandeira), esconde-se contudo o fato de que quase todos os assassinos eram também gays ou seja "bofes".
Fosse real essa sensibilidade demonstrada pelos grupos quando fazem escândalo por conta da violência "contra" os homossexuais; haveria pelo menos uma tentativa de solidariedade com os vivos. O que vemos é uma briga pelo poder que chega a ser ridícula, divisões e subdivisões, muito semelhantes às do meio religioso, perseguições, indiferença diante das necessidades concretas do meio, etc.
Os sinais mais promissores de vida e de dignidade correm por fora do movimento organizado, entre os assim chamados venenosamente de incubados. Aí existe toda uma rede de solidariedade que cresce sem alardes e sem "ter que ir parar na mídia".
Outra coisa constrangedora no meio gay brasileiro é a imitação mal feita do norte-americano, importamos até as necessidades e idéias. Agora por exemplo, fala-se em forçar "personalidades" gays a assumirem publicamente; o que é tão norte americano como a "apple pie". Ora, isso viola o direito à privacidade garantido em nossa Constituição e, além disso, dá um valor exagerado aos rótulos.
O que queremos?! Estabelecer uma casta distinta? Não seria suficiente garantirmos os direitos à cidadania comum a todos? Não é na constituição de uma nova sociedade, onde as diferenças sejam respeitadas sem ter que ser rotuladas, que devemos envolver-nos?
Uma insistência exagerada na diferença pode facilmente resvalar para uma visão direitista de um grupo eleito, superior ao "resto" da humanidade. Sinal disso a necessidade em citar nomes de personalidades do passado como havendo sido homossexuais e forçar os do presente a "sair do armário" (expressão muito norte-americana). Por que as "personalidades"? Seria isso uma tentativa de dizer algo no sentido de que as “não personalidades" não contam? Não é essa mentalidade hierárquica que finda por excluir os "não personalidades", excluindo por fim os diferentes, entre eles os gays?
Precisamos desenvolver uma comunidade aberta, de tolerância, solidariedade e apreciação pelo ser humano, pelo que somos, pelo meio onde vivemos e isso positivamente, vencendo o "veneno", a violência, a mentira e a fantasia sem trelas que muitos de nós desenvolvemos no gueto. Só assim poderemos desenvolver plenamente a nossa humanidade enquanto gays e lésbicas.
Lésbicas; eis aí outro sinal de nossa situação desequilibrada, o pouco que falamos sobre elas, e a sua ausência no discurso dos movimentos é sintoma do machismo que predomina mesmo em nosso meio.
Uma última autocrítica; a busca de privilégios fora do contexto geral da comunidade humana, exemplo disso a moda atual de se querer ser atendido na delegacia de mulheres quando em necessidade de socorro policial. Ora, no Brasil o atendimento policial é ruim em todos os níveis, todos somos vítimas disso igualmente e cabe unirmo-nos num esforço conjunto para fazermos valer a nossa cidadania comum e não buscarmos tratamento especial, senão teremos que abrir delegacias especiais para os negros, ciganos, os pobres, etc.
A diferença só faz sentido dentro do conjunto maior do que somos enquanto pessoas humanas, membros de uma só humanidade, a qual por sua vez está enraizada no ventre da Gaia, nossa Mãe Terra.

Onaldo A. Pereira
 
BIBLIOGRAFIA
ORAISON, Marc - "The Homossexual Question" - Harper and Row, Publishers, New York, NY, USA, 1975.
GLASER, Chirs - "Come Homel" - Harper San Francisco, New York, NY, USA, 1990.
GILLMAN, Harvery -"A Minority of One" - Quaker Home Service, London, GB, 1988.
SCANZONI, Letha and MOLLENKOTT, Virginia R. - "Is The Homossexual My Neighbor?" - Harper and Row, New York, NY, USA, 1980.
FORTUNATO, John E. - "Embracing lhe Exile" - Harper and Row, New York, NY, USA, 1982.
HOFFMAN, Martin - "The Gay World" - Bantam Books, New York, NY, USA, 1973.
WOODS, Richard - "Another kind of Love" - Imaqe Books, Garden City, NY, USA, 1978.
NELSON, James B. - "Embodiment" - Angsburg Publishing House, Minneapolis, MI, USA, 1979.
BOSWELL, John – "Same-Sex Unions in Premodern Europe" – Villard Books, New York, 1994

2 comentários:

Faces Berty disse...

Muito interessante este texto, e foi muito esclarecedor para mim.
Parabéns por posta-lo.

Anônimo disse...

Falo pela Tradição que sigo - a homossexualidade não é apoiada pela Cabalá, assim como a heterossexualidade não é. O que a Cabalá apóia é que cada um descubra e siga sua própria verdade interna. Ainda segundo uma das perspectivas possíveis dentro da prática cabalística, a grande luta contra o preconceito e a discriminação não começa quando atacamos quem nos ataca. Começa quando nos tornamos mais fortes, melhores, ganhamos mais centro, mais estrutura e mais serenidade. Começamos a ganhar a luta quando conquistamos nosso amor-próprio, elevamos nossa auto-estima. Quando passamos a ver a força imensa que temos dentro de nós e usamos essa força sem culpa, sem nos colocarmos como vítimas de nada e nem de ninguém. A Cabalá não é religiosa e não está presa à moral, que é socialmente construída, e por isso seu estudo sempre foi visto com insegurança pela ortodoxia judaica. Mais em escoladesafed.blogspot.com