segunda-feira, agosto 03, 2009

EDUCAÇÃO - Homofobia na escola


ENTREVISTA / EDUARDO PIZA MELLO
'O preconceito é um só'

Renato Queiroz

Na madrugada do dia 6 de fevereiro de 2000, o adestrador de cães Edson Néris da Silva passeava de mãos dadas com seu companheiro na Praça da República, no Centro de São Paulo. O casal foi surpreendido por um grupo de jovens skinheads homofóbicos. O namorado conseguiu escapar, mas Edson foi espancado barbaramente a chutes e golpes de soco-inglês. Acabou morrendo em decorrência da várias hemorragias internas. A morte de pessoas motivadas apenas por sua orientação sexual é o lado mais perverso da homofobia. Hoje Edson dá nome ao Instituto Edson Neris, que tem como um de seus líderes o advogado Eduardo Piza Mello. Especialista em questões de direitos humanos, o advogado tem uma história de luta para que o Poder Judiciário e o Ministério Público sejam efetivamente instrumentos de socorro para os atingidos pelo preconceito e discriminação. Nessa entrevista, por e-mail, ao POPULAR, Eduardo comenta o estudo recente que apontou que que 87% da comunidade escolar ­-- pais, professores e alunos -- tem algum tipo assumido de preconceito contra homossexuais no Brasil.

O alto índice de pais, alunos e professores que admitiram ter alguma forma de preconceito contra homossexuais chegou a surpreendê-lo?
Não. Tudo o que diz respeito à opinião da população sobre comportamento, apurada através de levantamentos e pesquisas, carece de cautela na apreciação dos resultados. É necessário que se entenda o significado, a dimensão e as implicações do "preconceito" presente na pesquisa. Além disso, a homossexualidade é um tema que historicamente está relacionado à discriminação, envolto num contexto em que outras questões igualmente complexas concorrem, como religião e sexualidade. Vejam que há apenas 25 anos o então cardeal do Rio de Janeiro, dom Eugênio Salles, declarou que a aids era um castigo de Deus, em razão da conduta e modo de vida dos homossexuais. Falamos de um dos expoentes da Igreja Católica no Brasil dos últimos 30 anos. Não era um padre de uma paróquia afastada do sertão. Os homossexuais não são mais conhecidos como grupo de risco da aids. Hoje qualquer pessoa que não se cuida pode se infectar com o vírus do HIV. Recentemente, o juiz Maximiano Junqueira Filho, titular da 9a. Vara Criminal de São Paulo, ao julgar um processo em que o jogador Richarlyson do São Paulo apresentou queixa-crime contra um profissional de imprensa, por tê-lo chamado de homossexual, o magistrado disse em sua sentença que se o jogador fosse homossexual, melhor seria deixar o futebol, que é um "jogo viril, varonil, não homossexual". Dois exemplos de duas pessoas letradas que tiveram suas biografias maculadas indelével e eternamente, em razão da ignorância e do preconceito. Neste contexto, a comunidade escolar apresentar um índice tão alto de preconceito é concebível, principalmente se a ideia de preconceito apurada na pesquisa for ampla, de modo a abranger desde pequenos fatos do cotidiano, como brincadeiras entre alunos, até significativas ações de efeito coletivo, como não aceitar matrículas de alunos que sejam filhos de casais do mesmo sexo, por exemplo.

Para alguns críticos, a escola perdeu o compasso da sociedade, que parece já não ver a homossexualidade como um tabu tão grande. O senhor concorda com essa visão?
Concordo sim, mas em termos. Se estivermos falando de escolas cuja linha pedagógica contém preocupação com a formação do aluno para uma cidadania plena, estou certo que obrigatoriamente a discussão sobre homossexualidade vai surgir, e de uma forma inclusiva. Mas este é um exemplo que mais se encaixa na exceção do que na regra das escolas no Brasil. O governo Lula está investindo na compra de computadores e na inserção dos alunos e professores na era digital. Assim creio que vários governadores e prefeitos também estejam fazendo. Mas no quadro geral, vê-se que o grau de necessidades e carências é muito alto no sistema educacional, e não será o acesso a internet que reverterá esta situação. Como esperar que no ambiente escolar a homossexualidade seja debatida, se sequer há professores que tenham competência e conhecimento do assunto? Sem falar na análise individual que cada um deve fazer sobre o grau de seu próprio preconceito, para iniciar um processo de desconstrução deste estado de coisas.

Qual a diferença entre o preconceito racial e o preconceito contra homossexuais no ambiente escolar?
Não há nenhuma! O preconceito é um só, com roupagens diferenciadas, e a vítima também uma só, o ser humano. O preconceito está diretamente relacionado à ignorância, à discriminação e à violação dos direitos fundamentais. É claro que podemos estabelecer parâmetros distintos para analisar um fenômeno do outro. Veja que para o enfrentamento contra o preconceito racial hoje há um maior aparelhamento da sociedade civil e do próprio Estado, quer com normas legais e administrativas repressoras, quer com a fixação de políticas públicas afirmativas, como as cotas racias para universidades públicas, por exemplo. Os brasileiros negros representam 48% da população total, e isto implica adoção destas medidas para esta metade da população. Já a comunidade LGBT tem representação em torno de 10% da população, não conta na sua maioria com um elemento fundamental para o combate à homofobia, que é o suporte familiar, presente na maioria dos casos de incorrência de discriminação em razão da cor da pele. Aplico aqui o clássico exemplo do menino negro (que poderia ser judeu, ou nordestino em São Paulo, ou cigano) que é maltratado e discriminado por seus amigos de escola, exatamente por ser negro, judeu, nordestino ou cigano e corre para sua família em busca de apoio e abrigo. Lá ele encontra pessoas iguais a ele, onde será amparado, e aprenderá a sentir estima de ser o que é a se defender. O jovem gay que sofre maltrato ou discriminação por ser gay não tem uma família que o abrigue, apoie e o defenda, na maioria das vezes. Este jovem apanhará na rua e também em casa. Seus pais e irmãos terão vergonha dele. Esta tem sido a prática que precisa ser mudada.

Na sua vida escolar o senhor chegou a sofrer algum tipo de discriminação?
Sim, e muitas vezes. Venho da classe média paulistana mais encardida, que é a do Brooklin, em Santo Amaro, onde nasci e fui criado. Estudei em colégio de padres italianos católicos, o Meninópolis, que hoje por graça de Deus deixou de existir. A rivalidade entre os meninos era estimulada pelos padres da congregação e a violência fazia parte do dia a dia dos alunos. Não guardo nenhuma boa lembrança deste período de minha vida escolar. Era uma linha pedagógica atrasada para aquela época, final da década de 60. As professoras elegiam seus alunos preferidos e não escondiam isto de ninguém, oferecendo-lhes tratamento sempre mais benéfico. Geralmente a mãe destes alunos era amiga das professoras. A discriminação não era identificada claramente, mas veladamente. Depois que mudei para a escola pública Professor Ennio Voss, senti-me muito mais inserido e igual aos meus colegas.

Existe diferença entre a homofobia na rede de ensino público da rede particular?
Não sou especialista nem tenho conhecimento para oferecer informações sobre esta particularidade. Mas pode-se dizer que há mais chances de um aluno de escola da rede particular se deparar com a questão da homossexualidade e da homofobia, quer como assunto do currículo escolar, quer como fato espontâneo e aleatório na convivência escolar, tendo um meio social talvez mais receptivo, ou menos preconceituoso. Esta é uma possiblidade e não há qualquer garantia que isto vá ocorrer. Vejam que, se a escola for religiosa, certamente há risco de que a homofobia seja reforçada, assim como o preconceito e a discriminação. A vantagem que este grupo (rede particular) possui é a de ter recursos que, às vezes, pode se converter em boa qualidade de educação, libertadora e progressista. No mais, a homofobia não faz qualquer tipo de discriminação, e está presente entre pessoas ricas e pobres, crentes ou não, brancas ou não brancas, cultas ou incultas, juízes e padres (e pastores também). A única forma de combatê-la é com educação para a diversidade, direitos humanos, democracia e estado de direito.

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