quarta-feira, julho 22, 2009

Transexuais

Direito de transexuais à cirurgia de transgenitalizaçã o pelo SUS agora é definitivo
20/7/2009 19h35

assista o video : http://www.prr4.mpf.gov.br/site/videos/20072009_transexualismo.wmv

União desistiu de recursos que ainda poderiam reverter decisão em favor de ação civil pública promovida pelo MPF

No início deste mês, a União desistiu dos recursos que havia interposto contra decisão de 2007 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que garantia o direito de transexuais de todo o país realizarem a cirurgia de transgenitalizaçã o pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Agora, o grupo pode comemorar definitivamente, já que esta era a última possibilidade de reversão judicial.

Em agosto de 2007, o Ministério Público Federal (MPF) conquistou no TRF-4 a garantia do direito de transexuais de todo o país à realização de cirurgia de transgenitalizaçã o pelo SUS. Por unanimidade, a 3ª Turma deu provimento a recurso interposto pela Procuradoria Regional da República da 4ª Região (PRR-4) em uma ação civil pública, seguindo o voto do relator, o juiz federal Roger Raupp Rios.

A ação, ajuizada pelos então procuradores da República Paulo Gilberto Cogo Leivas, Marcelo Veiga Beckhausen e Luiz Carlos Weber, foi considerada improcedente na Justiça Federal em primeira instância. O MPF recorreu da decisão ao TRF-4 e obteve o resultado favorável. "A ação civil pública foi fundamentada com base nos direitos à saúde, à dignidade humana, no direito à identidade sexual e no direito à igualdade", explica o hoje procurador regional da República Paulo Leivas.

Em outubro de 2008, a União interpôs recursos no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça contestando a decisão do TRF-4. No último dia 8, no entanto, informou que desistiria dos mesmos.

Ministério da Saúde - Em agosto do ano passado, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 1.707. De acordo com a norma, cabe à Secretaria de Atenção à Saúde adotar as providências necessárias à plena estruturação e implantação do processo transexualizador no SUS, definindo os critérios mínimos para o funcionamento, o monitoramento e a avaliação dos serviços.

Confira: a íntegra da portaria, o acórdão do TRF-4 e assista à matéria sobre a transgenitalizaçã o veiculada na TV Justiça.


Assessoria de Comunicação
Procuradoria Regional da República na 4ª Região
(51) 3216-2016 ou 3216-2015

ADVERTÊNCIA
Este texto não substitui o publicado no Diário Oficial da União


Ministério da Saúde
Gabinete do Ministro
PORTARIA Nº 1.707, DE 18 DE AGOSTO DE 2008
Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo Transexualizador, a ser implantado nas unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão.
O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso das suas atribuições, que lhe confere os incisos I e II do parágrafo único do artigo 87 da Constituição e,

Considerando que a orientação sexual e a identidade de gênero são fatores reconhecidos pelo Ministério da Saúde como determinantes e condicionantes da situação de saúde, não apenas por implicarem práticas sexuais e sociais específicas, mas também por expor a população GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) a agravos decorrentes do estigma, dos processos discriminatórios e de exclusão que violam seus direitos humanos, dentre os quais os direitos à saúde, à dignidade, à não discriminação, à autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade;

Considerando que a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, instituída pela Portaria nº 675/GM, de 31 de março de 2006, menciona, explicitamente, o direito ao atendimento humanizado e livre de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero a todos os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS);

Considerando que o transexualismo trata-se de um desejo de viver e ser aceito na condição de enquanto pessoa do sexo oposto, que em geral vem acompanhado de um mal-estar ou de sentimento de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico, situações estas que devem ser abordadas dentro da integralidade da atenção à saúde preconizada e a ser prestada pelo SUS;

Considerando a Resolução nº 1.652, de 6 de novembro de 2002, do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre a cirurgia do transgenitalismo;

Considerando a necessidade de regulamentação dos procedimentos de transgenitalização no SUS;

Considerando a necessidade de se estabelecerem as bases para as indicações, organização da rede assistencial, regulação do acesso, controle, avaliação e auditoria do processo transexualizador no SUS, e

Considerando a pactuação ocorrida na Reunião da Comissão Intergestores Tripartite - CIT do dia 31 de julho de 2008, resolve:

Art. 1º - Instituir, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo Transexualizador a ser empreendido em serviços de referência devidamente habilitados à atenção integral à saúde aos indivíduos que dele necessitem, observadas as condições estabelecidas na Resolução nº 1.652, de 6 de novembro de 2002, expedida pelo Conselho Federal de Medicina.

Art. 2º - Estabelecer que sejam organizadas e implantadas, de forma articulada entre o Ministério da Saúde, as Secretarias de Saúde dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, as ações para o Processo Transexualizador no âmbito do SUS, permitindo:

I - a integralidade da atenção, não restringindo nem centralizando a meta terapêutica no procedimento cirúrgico de transgenitalização e de demais intervenções somáticas aparentes ou inaparentes;
II - a humanização da atenção, promovendo um atendimento livre de discriminação, inclusive pela sensibilização dos trabalhadores e dos demais usuários do estabelecimento de saúde para o respeito às diferenças e à dignidade humana;
III - a fomentação, a coordenação a e execução de projetos estratégicos que visem ao estudo de eficácia, efetividade, custo/benefício e qualidade do processo transexualizador; e
IV - a capacitação, a manutenção e a educação permanente das equipes de saúde em todo o âmbito da atenção, enfocando a promoção da saúde, da primária à quaternária, e interessando os pólos de educação permanente em saúde.
Art. 3º - Determinar à Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde - SAS/MS que, isoladamente ou em conjunto com outras áreas e agências vinculadas ao Ministério da Saúde, adote as providências necessárias à plena estruturação e implantação do Processo Transexualizador no SUS, definindo os critérios mínimos para o funcionamento, o monitoramento e a avaliação dos serviços.

Art. 4º - Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

JOSÉ GOMES TEMPORÃO

D.E.

Publicado em 23/08/2007
APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.71.00.026279-9/RS
RELATOR : Juiz Federal ROGER RAUPP RIOS
APELANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
APELADO : UNIÃO FEDERAL
ADVOGADO : Luis Antonio Alcoba de Freitas


























EMENTA

























DIREITO CONSTITUCIONAL. TRANSEXUALISMO. INCLUSÃO NA TABELA SIH-SUS DE PROCEDIMENTOS MÉDICOS DE TRANSGENITALIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE E PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVO DE SEXO. DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVO DE GÊNERO. DIREITOS FUNDAMENTAIS DE LIBERDADE, LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE, PRIVACIDADE E RESPEITO À DIGNIDADE HUMANA. DIREITO À SAÚDE. FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO.
1 - A exclusão da lista de procedimentos médicos custeados pelo Sistema Único de Saúde das cirurgias de transgenitalização e dos procedimentos complementares, em desfavor de transexuais, configura discriminação proibida constitucionalmente, além de ofender os direitos fundamentais de liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade, proteção à dignidade humana e saúde.
2 - A proibição constitucional de discriminação por motivo de sexo protege heterossexuais, homossexuais, transexuais e travestis, sempre que a sexualidade seja o fator decisivo para a imposição de tratamentos desfavoráveis.
3 - A proibição de discriminação por motivo de sexo compreende, além da proteção contra tratamentos desfavoráveis fundados na distinção biológica entre homens e mulheres, proteção diante de tratamentos desfavoráveis decorrentes do gênero, relativos ao papel social, à imagem e às percepções culturais que se referem à masculinidade e à feminilidade.
4 - O princípio da igualdade impõe a adoção de mesmo tratamento aos destinatários das medidas estatais, a menos que razões suficientes exijam diversidade de tratamento, recaindo o ônus argumentativo sobre o cabimento da diferenciação. Não há justificativa para tratamento desfavorável a transexuais quanto ao custeio pelo SUS das cirurgias de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia, pois (a) trata-se de prestações de saúde adequadas e necessárias para o tratamento médico do transexualismo e (b) não se pode justificar uma discriminação sexual (contra transexuais masculinos) com a invocação de outra discriminação sexual (contra transexuais femininos).
5 - O direito fundamental de liberdade, diretamente relacionado com os direitos fundamentais ao livre desenvolvimento da personalidade e de privacidade, concebendo os indivíduos como sujeitos de direito ao invés de objetos de regulação alheia, protege a sexualidade como esfera da vida individual livre da interferência de terceiros, afastando imposições indevidas sobre transexuais, mulheres, homossexuais e travestis.
6 - A norma de direito fundamental que consagra a proteção à dignidade humana requer a consideração do ser humano como um fim em si mesmo, ao invés de meio para a realização de fins e de valores que lhe são externos e impostos por terceiros; são inconstitucionais, portanto, visões de mundo heterônomas, que imponham aos transexuais limites e restrições indevidas, com repercussão no acesso a procedimentos médicos.
7 - A força normativa da Constituição, enquanto princípio de interpretação, requer que a concretização dos direitos fundamentais empreste a maior força normativa possível a todos os direitos simultaneamente, pelo que a compreensão do direito à saúde deve ser informada pelo conteúdo dos diversos direitos fundamentais relevantes para o caso.
8 - O direito à saúde é direito fundamental, dotado de eficácia e aplicabilidade imediatas, apto a produzir direitos e deveres nas relações dos poderes públicos entre si e diante dos cidadãos, superada a noção de norma meramente programática, sob pena de esvaziamento do caráter normativo da Constituição.
9 - A doutrina e a jurisprudência constitucionais contemporâneas admitem a eficácia direta da norma constitucional que assegura o direito à saúde, ao menos quando as prestações são de grande importância para seus titulares e inexiste risco de dano financeiro grave, o que inclui o direito à assistência médica vital, que prevalece, em princípio, inclusive quando ponderado em face de outros princípios e bens jurídicos.
10 - A inclusão dos procedimentos médicos relativos ao transexualismo, dentre aqueles previstos na Tabela SIH-SUS, configura correção judicial diante de discriminação lesiva aos direitos fundamentais de transexuais, uma vez que tais prestações já estão contempladas pelo sistema público de saúde.
11- Hipótese que configura proteção de direito fundamental à saúde derivado, uma vez que a atuação judicial elimina discriminação indevida que impede o acesso igualitário ao serviço público.
12 - As cirurgias de transgenitalização não configuram ilícito penal, cuidando-se de típicas prestações de saúde, sem caráter mutilador.
13 - As cirurgias de transgenitalização recomendadas para o tratamento do transexualismo não são procedimentos de caráter experimental, conforme atestam Comitês de Ética em Pesquisa Médica e manifestam Resoluções do Conselho Federal de Medicina.
14 - A limitação da reserva do possível não se aplica ao caso, tendo em vista a previsão destes procedimentos na Tabela SIH-SUS vigente e o muito reduzido quantitativo de intervenções requeridas.
14 - Precedentes do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, da Corte Européia de Justiça, do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, da Suprema Corte dos Estados Unidos, da Suprema Corte do Canadá, do Tribunal Constitucional da Colômbia, do Tribunal Constitucional Federal alemão e do Tribunal Constitucional de Portugal.
DIREITO PROCESSUAL. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. ABRANGÊNCIA NACIONAL DA DECISÃO.
15 - O Ministério Público Federal é parte legítima para a propositura de ação civil pública, seja porque o pedido se fundamenta em direito transindividual (correção de discriminação em tabela de remuneração de procedimentos médicos do Sistema Único de Saúde), seja porque os direitos dos membros do grupo beneficiário têm relevância jurídica, social e institucional.
16 - Cabível a antecipação de tutela, no julgamento do mérito de apelação cível, diante da fundamentação definitiva pela procedência do pedido e da presença do risco de dano irreparável ou de difícil reparação, dado o grande e intenso sofrimento a que estão submetidos transexuais nos casos em que os procedimentos cirúrgicos são necessários, situação que conduz à auto-mutilação e ao suicídio. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
17 - Conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal e deste Tribunal Regional Federal da 4ª Região, é possível a atribuição de eficácia nacional à decisão proferida em ação civil pública, não se aplicando a limitação do artigo 16 da Lei nº 7.347/85 (redação da Lei nº 9.494/97), em virtude da natureza do direito pleiteado e das graves conseqüências da restrição espacial para outros bens jurídicos constitucionais.
18 - Apelo provido, com julgamento de procedência do pedido e imposição de multa diária, acaso descumprido o provimento judicial pela Administração Pública.

























ACÓRDÃO

























Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao apelo, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 14 de agosto de 2007.





































Juiz Federal ROGER RAUPP RIOS
Relator



APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.71.00.026279-9/RS
RELATOR : Juiz Federal ROGER RAUPP RIOS
APELANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
APELADO : UNIÃO FEDERAL
ADVOGADO : Luis Antonio Alcoba de Freitas


























RELATÓRIO

























O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ajuizou a presente ação civil pública contra a UNIÃO, requerendo provimento judicial que condene a ré a:
(1) promover, no prazo de 7 dias, todas as medidas apropriadas para possibilitar aos transexuais a realização, pelo Sistema Único de Saúde, de todos os procedimentos médicos necessários para garantir a cirurgia de transgenitalização do tipo necolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, conforme critérios estabelecidos na Resolução nº 1.482/97, do Conselho Federal de Medicina;
(2) editar, no prazo de 7 dias, ato normativo que preveja a inclusão, de modo expresso, na Tabela de Procedimentos remunerados pelo Sistema Único de Saúde (Tabela SIH-SUS), de todos os procedimentos cirúrgicos necessários para a realização da cirurgia nominada no item anterior, bem como remunere os hospitais pelos procedimentos realizados em conformidade com a Resolução nº 1.482/97.


A petição inicial, instruída com extensa e profunda análise da transexualidade e suas repercussões jurídicas junto ao Sistema Único de Saúde em face da inexistência de previsão dos tratamentos correspondentes, fundamenta a pretensão em diversos princípios e direitos constitucionais. Dentre eles, enumero: (1) respeito à dignidade humana; (2) igualdade; (3) intimidade; (4) vida privada e (5) saúde.


O feito foi instruído com abundante prova documental, a fim de demonstrar a realidade experimentada por transexuais e a necessidade de cobertura dos procedimentos médicos pelo SUS.


Intimada para manifestar-se diante do pedido de liminar, a União argüiu: (1) ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal; (2) limitação da eficácia da sentença à competência territorial do órgão judicial; (3) impossibilidade de destinação dos recursos orçamentários da área da saúde a demandas individualizadas, bem como a natureza meramente programática do direito à saúde, previsto no artigo 196 da Constituição; (4) que a cirurgia de transgenitalização tem caráter meramente experimental, passível de realização somente em hospitais universitários ou públicos adequados à pesquisa; (5) inexistência de discriminação sexual, pois a não disponibilização de cirurgia corretiva para lesão grave na genitália a transexuais não tem relação com o sexo do paciente, mas sim com a natureza da doença, sendo evidente a distinção entre uma lesão grave na genitália e o transexualismo; (6) a polêmica acerca da ilicitude penal do tipo de intervenção cirúrgica requerida. Teceu, ao final, argumentos quanto: (7) à desnecessidade de provimento liminar, pois ausente perigo de irreparabilidade ou dificuldade de reparação; (8) a impossibilidade de antecipação da tutela no caso de sentença sujeita ao reexame necessário; (9) a impossibilidade de medida liminar contra a Fazenda Pública que impliquem liberação de valores; (10) necessidade de respeito ao regime de precatório.


Foi proferida sentença de extinção do feito sem julgamento de mérito, por impossibilidade jurídica do pedido e inadequação da via eleita para a solução da questão posta em juízo. O provimento judicial recorrido fundamentou suas conclusões na natureza programática da norma do artigo 196 da CF/88 (direito à saúde), inexistindo, portanto, direito subjetivo violado. Nesta linha, aduziu que o Poder Judiciário não pode exercer poder legiferante, sendo impróprio solucionar a questão deduzida de forma global, com efeito erga omnes em ação civil pública. Ademais, considerou a sentença que razões científicas obstam o provimento requerido, uma vez que a Resolução citada considera a cirurgia de transgenitalização de caráter experimental, havendo, inclusive, disposição administrativa pela inclusão do aludido procedimento no âmbito do SUS, a partir de resolução do Conselho Federal de Medicina que altera a condição atual desse procedimento.


O Ministério Público Federal apelou, requerendo a reforma da sentença com o acolhimento do pedido; sucessivamente, a anulação da decisão para que o julgamento seja retomado pelo juízo monocrático.


Após as contra-razões da União, o Ministério Público Federal requereu a concessão da antecipação da tutela recursal, medida indeferida, por maioria.
Neste tribunal, o MPF requereu a suspensão do feito por algumas vezes, em face da constituição de grupo de trabalho pelo Ministério da Saúde, objetivando a inclusão do procedimento no SUS. A medida foi renovada algumas vezes, tendo transcorrido integralmente o prazo assinado. Em derradeira manifestação, foi noticiada a continuidade dos trabalhos, sem, contudo, qualquer previsão de sua conclusão.


É o sucinto relatório.































Juiz Federal Roger Raupp Rios
Relator


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Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): ROGER RAUPP RIOS:2164
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Data e Hora: 14/08/2007 18:28:33

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APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.71.00.026279-9/RS
RELATOR : Juiz Federal ROGER RAUPP RIOS
APELANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
APELADO : UNIÃO FEDERAL
ADVOGADO : Luis Antonio Alcoba de Freitas


























VOTO

























O pedido na Ação Civil Pública e as questões jurídicas envolvidas


As questões jurídicas trazidas a juízo pela presente ação civil pública decorrem do pedido veiculado pelo Ministério Público Federal: a inclusão na tabela de procedimentos pagos pelo Sistema Único de Saúde, da cirurgia de transgenitalização dos tipos neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, conforme critérios estabelecidos na Resolução nº 1.482/1997, do Conselho Federal de Medicina.


Uma resposta constitucionalmente correta ao litígio envolve aspectos processuais e materiais. Processualmente, questiona-se a legitimidade do Ministério Público Federal para a demanda e o alcance nacional ou regional do provimento judicial. Materialmente, controverte-se a possibilidade jurídica da atuação judicial em face da exclusão destas cirurgias no âmbito do SUS, as exigências dos direitos fundamentais dos indivíduos transexuais em face desta exclusão e a possibilidade da oferta destes procedimentos pelo SUS, seja em face da reserva do possível, seja em face do alegado caráter experimental das intervenções cirúrgicas referidas. A solução adequada para o litígio reclama a compreensão da transexualidade como fenômeno médico e social para, a seguir, indagar-se sobre suas conseqüências jurídicas.


Antes de adentrar neste debate, anoto que se trata de recurso de apelação que possibilita o julgamento de mérito desde logo, pois atendido o parágrafo 3º do art. 515, uma vez que a controvérsia é de matéria exclusivamente de direito (como desde a inicial afirma e requer o Ministério Público Federal) e a União defendeu-se tanto antes da sentença (que lhe foi favorável), quanto contra-arrazoou (fls. 592/688) o recurso de apelação.


De fato, a controvérsia se resume a questões jurídicas e deslinde delas é suficientes para a solução do litígio, quais sejam: (a) legitimidade ativa do MPF, (b) regime legal da antecipação de tutela frente à Fazenda Pública, (c) delimitação legal da eficácia espacial do provimento judicial, (d) o significado dos direitos fundamentais diante da transexualidade e (e) se há ou não restrição jurídica à inclusão das cirurgias de transgenitalização (neocolvulvocosplastia e neofaloplastia) dentre os procedimentos previstos na Tabela de remuneração do SUS, em face dos termos de Resolução do Conselho Federal de Medicina sobre o tema.


Aliás, a teleologia de toda a reforma processual, emblematicamente estampada no parágrafo 3º do artigo 515, é o cumprimento do direito fundamental à efetividade da jurisdição e à duração razoável do processo, objetivo que será melhor atendido pelo imediato julgamento do feito.




PRELIMINAR: a legitimidade ativa do Ministério Público Federal para esta demanda judicial


O pedido veiculado na inicial é de provimento judicial que obrigue a União a tomar as medidas apropriadas para possibilitar a transexuais a realização, pelo SUS, dos procedimentos médicos necessários para a cirurgia de readequação de sexo, bem como a inclusão destes na tabela de procedimentos remunerados pelo SUS, com a conseqüente remuneração dos hospitais.


Assim definido o pedido, não há dúvida acerca da legitimidade ativa do MPF para esta demanda. Trata-se, à evidência, de pedido que veicula direitos e interesses metaindividuais, uma vez que estão em jogo direitos coletivos, assim definidos como aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.


Com efeito, uma análise atenta do pedido revela nitidamente esta natureza coletiva: incluir procedimento na tabela remuneratória do SUS e disponibilizar o acesso a determinados procedimentos é direito pertencente ao grupo de indivíduos determináveis (no caso, transexuais), uma vez que nenhum membro do grupo, individualmente, poderia pleitear tal providência; aos indivíduos caberia, no máximo, requerer medida judicial que obrigasse ao SUS providenciar o serviço, nunca a inclusão do procedimento na referida tabela ou a disponibilidade do procedimento a todo indivíduo transexual.


Conclui-se, portanto, que neste litígio o MPF atua de acordo com a competência que lhe é atribuída pelo artigo 129, III, da Constituição de 1988.


No mesmo sentido, em caso similar, decidiu o Supremo Tribunal Federal:


EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. MENSALIDADES ESCOLARES: CAPACIDADE POSTULATÓRIA DO PARQUET PARA DISCUTI-LAS EM JUÍZO. 1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127). 2. Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III). 3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. 3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos. 4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. 4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas. 5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal. 5.1. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal. Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação. (RE 163231/SP)


Afirmada a legitimidade ativa do MPF e o cabimento da ação civil pública, resta examinar o alcance nacional ou regional do provimento judicial, o que será enfrentado ao final deste voto.



MÉRITO


Detenho-me, a partir de agora, em questões jurídicas materiais suscitadas pelo litígio. Pelo menos duas são as abordagens possíveis diante da transexualidade: a médica e a social. Cada uma delas apresenta implicações não só para a compreensão deste fenômeno, como também para a concretização dos direitos fundamentais. Como será visto abaixo, tais abordagens não são excludentes; todavia, a força normativa da Constituição e a necessidade de emprestar a maior eficácia jurídica possível aos direitos fundamentais requerem que se vá além de uma perspectiva meramente medicalizada da transexualidade.



A abordagem biomédica da transexualidade


A partir de uma perspectiva biomédica, a transexualidade pode ser descrita como distúrbio de identidade sexual, no qual o indivíduo necessita alterar a designação sexual que lhe foi assignada, sob pena de graves conseqüências para sua vida, dentre as quais se destaca intenso sofrimento, chegando a gerar, muitas vezes, no caso dos homens, à auto-mutilação genital e, no caso das mulheres, à auto-mutilação dos seios; em ambos, ao suicídio.


Conforme explica o Prof. Edvaldo Souza Couto, "existem diferentes conceitos de transexualidade. Eles têm em comum a incompatibilidade da conformação genital com a identidade psicológica no mesmo indivíduo. O transexual é aquele que recusa totalmente o sexo que lhe foi atribuído civilmente. Identifica-se psicologicamente com o sexo oposto, embora biologicamente não seja portador de nenhuma anomalia. Geralmente possui genitália perfeita, interna e externa, de um único sexo mas a nível psicológico responde a estímulos de outro. Costumam considerar-se um 'erro da natureza'. Segundo a Associação Paulista de Medicina, transexual é o indivíduo com identidade psicossexual oposta a seus órgãos genitais externos, com o desejo compulsivo de mudança destes. Neste quadro, as principais características da transexualidade são: a) a convicção de pertencer a outro sexo; b) aversão pelos atributos genitais dados pela natureza e c) o interesse pela adequação dos genitais." (Transexualidade - o corpo em mutação, Salvador: Editora GGB, 1999, p. 26).


Assim descrita, a transexualidade é considerada doença pela Organização Mundial de Saúde e está enquadrada no Código Internacional de Doenças.


Ainda no campo biomédico, diversamente do que ocorria com as formas de intersexualidade fisiológica (caso do hermafroditismo) e com a homossexualidade (entendida como desordem psíquica - a chamada homossexualidade ego-distônica ou como uma variação legítima da orientação sexual), a transexualidade ganha estatuto médico autônomo a partir dos anos 1950, hipótese onde a intervenção médica tem o efeito de reparar uma situação de desarmonia entre o corpo real e sua representação psicológica, donde a noção de cirurgia de redesignação sexual (sobre a história da compreensão da transexualidade, Pierre-Henri Castel, 'Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do 'fenômeno transexual' (1910-1995)', Revista Brasileira de História, SP: ANPUH, vol. 21, nº 41, 2001). Nesta abordagem, é aos profissionais da medicina, portanto, que incumbe corrigir um "erro da natureza" ou, dito de outra forma, de tornar o corpo conforme a verdadeira personalidade (ver Denis Salas, Sujet de chair et sujet de droit: la justice face au transsexualisme, Paris: Presses Universitaires de France, 1994, p. 35-39).


A abordagem biomédica é, historicamente, predominante neste campo. Todavia, como será visto logo a seguir, ela não é a única perspectiva existente; é imperiosa a consideração de uma perspectiva social (que diz respeito ao conteúdo e à forma das relações sociais, cujo desvendamento só se tornou posssível a partir da noção de gênero), sob pena de emprestar-se solução jurídica incorreta quanto à interpretação sistemática do direito e à força normativa da Constituição. Com efeito, a força normativa da Constituição, como método próprio de interpretação constitucional, exige do juiz, ao resolver uma questão de direitos fundamentais, adotar a solução que propicie a maior eficácia jurídica possível das normas constitucionais, conforme lição de Konrad Hesse (Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, Porto Alegre: SAF, 1998). É, portanto, diante deste princípio de hermenêutica constitucional que se revela imprescindível a consideração de uma abordagem social da transexualidade, ao lado da biomédica, a fim de que se alcance uma solução jurídica constitucionalmente adequada para este litígio.



A abordagem social da transexualidade


A análise da controvérsia pode ser efetuada a partir de duas perspectivas, concorrentes e juridicamente não-conflitantes: via direito à saúde e via direito à auto-determinação da identidade sexual, esta última informada pelos direitos fundamentais da liberdade, da igualdade e da proteção à dignidade humana.


Do ponto de vista da teoria e da dogmática dos direitos fundamentais, a dianteira de uma ou outra perspectiva não é irrelevante. Ao contrário, a força normativa da Constituição e o conseqüente dever de adotar a compreensão que maior eficácia empreste aos direitos fundamentais requer a prevalência da interpretação que concretize o direito à saúde a partir da perspectiva da liberdade, da igualdade e da proteção da dignidade humana. Não se trata de hierarquizar direitos fundamentais, privilegiando direitos de liberdade negativa sobre direitos prestacionais positivos. O que está em jogo é como dar concretude à noção da indivisibilidade e da interdependência entre os vários direitos humanos fundamentais, de modo a alcançar a maior eficácia jurídica de todos os direitos fundamentais.


O fenômeno da transexualidade é emblemático para se demonstrar esta dinâmica entre os vários direitos fundamentais. Isto porque, como acima relatei, a medicalização é a abordagem que predomina quando o assunto é transexualidade, donde a ênfase no debate sobre o direito à intervenção cirúrgica, instrumento apto a reparar o "erro da natureza". Na realidade, à esta perspectiva biomédica subjaz o chamado "binarismo de gênero", vale dizer, a concepção segundo a qual as identidades sexuais masculina e feminina correspondem a certos padrões pré-determinados, resultantes de uma série de elementos e características. Quem define esta combinação é, basicamente, a atuação combinada de duas ordens de saber e de crenças: o poder que detêm os profissionais da saúde (vistos como guardiões do saber biomédico) de definir "cientificamente" quem é homem e quem é mulher e, a seu lado, a prevalência de determinadas percepções, socialmente dominantes, sobre o que é ser masculino e o que é ser feminino. Tanto é verdade, que, para a apropriação médica da transexualidade como algo reservado à atuação e ao saber médicos, foi necessário separar os "verdadeiros" transexuais (mediante a enumeração de sintomas determinados, acima referidos) dos "falsos" transexuais.


Se tal binarismo for adotado na concretização do direito à saúde, estar-se-á reforçando a rigidez e a determinação por terceiros (os detentores do saber médico e as crenças majoritárias sobre o que ser verdadeiramente feminino e masculino) acerca da identidade sexual e de gênero que cada indivíduo experimenta e desenvolve em sua vida; o que se estará enfraquecendo, quando não compremetendo mortalmente, é o conteúdo jurídico dos direitos de liberdade, de igualdade, de não-discriminação e do respeito à dignidade humana.


Neste contexto, onde a autonomia e a igualdade, que são os valores básicos do constitucionalismo democrático, serão eclipsadas pelo poder alheio da medicalização e de opiniões socialmente dominantes, só restará uma alternativa aos seres humanos: deixar-se enquadrar no processo classificatório imposto por estas forças, onde o ser homem e o ser mulher, o ser masculino e o ser feminino, dependerão sempre do atestado alheio, que exige e impõe o enquadramento segundo um processo classificatório heterônomo, onde um conjunto de características é avaliado, abrangendo fatores genético, gonadal, endócrino, genital e psíquico.


Acaso for adotada uma perspectiva do direito à saúde que assuma acritica ou ingenuamente este binarismo de gênero, está-se a perpetrar uma série de restrições a diversos direitos fundamentais. De fato, eventual concretização do direito à saúde que legitime a imposição de uma visão rígida e inflexível do fenômeno humano das relações entre os gêneros tem impacto enorme em face de vários direitos fundamentais, para não dizer dramático.


Isto porque uma solução que se fundamente exclusivamente numa concepção biomédica e limitada do fenômeno da transexualidade conduz não-só à limitação da esfera de auto-determinação de indivíduos "heterossexuais normais" (homens heterossexuais dotados de modos mais delicados e temperamento mais sensível, por exemplo, são excluídos em testes psicotécnicos para cargos públicos policiais por não atenderem à "escala de heterossexualidade", como tive oportunidade de constatar em processo judicial) e de transexuais (que, como veremos, podem pleitear judicialmente, já tendo obtido sucesso, alteração de nome e registro civil sem submeter-se à cirurgia de transgenitalização), como também produz e legitima graves violações de direitos fundamentais de mulheres, travestis e homossexuais.


De fato, para os direitos das mulheres, uma solução orientada por tal binarismo rígido reforça dinâmicas históricas de subordinação feminina, reproduzindo situações e ideologias onde às mulheres são reservados o domínio do lar e um papel secundário na vida pública, social e econômica. Isto porque o reforço do binarismo de gênero tende a compactuar com diferencialismos sexuais que diminuem o espaço de construção de novas relações entre homens e mulheres, capazes de romper com privilégios e dominação masculinos. Num dos exemplos mais gritantes, repercussões jurídicas deste padrão chegaram, até bem pouco tempo atrás, a alimentar argumentos jurídicos que justificavam o estupro doméstico de esposas por maridos a pretexto de cumprimento de deveres conjugais, o assassinato de esposas por maridos em nome da legítima defesa da honra e a não caracterização do estupro como crime hediondo quando não houvesse violência ou grave ameaça, como se fosse possível estuprar uma mulher sem violência grave.


Com relação à homossexualidade, uma perspectiva que reforce o binarismo de gênero é devastadora. De fato, no horizonte desta dinâmica binária, a atração ou a conduta sexuais de alguém em direção a indivíduo do mesmo sexo são consideradas anormais e intoleráveis. Tanto que a proposta daqueles a quem mais incomoda e os quais menos toleram a diversidade sexual (que é o oposto do binarismo) é, pura e simplesmente, a eliminação da homossexualidade mediante a sua cura, através da inclusão de tratamentos médicos ou de rituais e práticas religiosas comunitárias, a serem inclusive disponibilizados ou custeados pelo SUS e por outros órgãos do Poder Público, quando não a criminalização.


Para os direitos das travestis, o reforço do binarismo de gênero é ainda mais violento. As travestis, encarnando quiçá a experiência mais radical da autonomia individual diante das convenções sociais sobre o que é padronizado como "natural" quanto ao sexo e sobre o que é tolerável pelos padrões tradicionais e dominantes de convívio entre homens e mulheres, ousam inventar um novo modo de ser em termos de gênero, transitando verdadeiramente nas "fronteiras do gênero" (para usar a expressão de Maria Luiza Heilborn, 'Gênero e Sexo dos Travestis', Sexualidade, Gênero e Sociedade, Rio de Janeiro: IMS-UERJ, nº 7-8). Trata-se de uma construção de si peculiar e original, onde, do ponto de vista do gênero, os indivíduos travestis se constroem pelo feminino. Nas palavras de Marcos Benedetti, "o feminino travesti", onde, "ao mesmo tempo em que produzem meticulosamente traços e formas femininas no corpo, estão construindo e recriando seus valores de gênero, tanto no que concerne ao feminino como ao masculino. A ingestão de hormônios, as aplicações de silicone, as roupas e os acessórios, o acuendar a neca, as depilações são momentos de um processo que é maior e que tem por resultado a própria travesti e o universo que ela cria e habita."(Toda Feita - o corpo e o gênero das travestis, Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 131). Como alertei logo acima, o reforço do binarismo de gênero em face das travestis incentiva todo o tipo de violência contra estes indivíduos: desde a desqualificação moral mais intensa até o freqüente assassinato, as travestis são vítimas número um da violência discriminatória.


Esta argumentação é desenvolvida para que não se perca de vista as repercussões da compreensão dos direitos fundamentais em causa e de sua relação, quando se julgar o pedido em julgamento: deferir a inclusão dos procedimentos requeridos na tabela do SUS visando à cura de indivíduos que sofrem de disforia de gênero é legítimo. Todavia, como já referi, a Constituição exige que se compreendam os direitos fundamentais emprestando-lhes a maior força normativa possível e evitando interpretação que implique restrição a outros princípios constitucionais e ofensa a direitos fundamentais de outros indivíduos e grupos.


Sendo assim, cumpre concretizar o direito à inclusão dos procedimentos a partir de uma compreensão da Constituição e dos direitos fundamentais que tenha seu ponto de partida nos direitos de liberdade e de igualdade (na sua dimensão proibitiva de discriminação), cuja relação com o direito fundamental à saúde reforça e fortalece. Neste método de interpretação constitucional, pode-se vislumbrar, inclusive, a influência do conteúdo jurídico de um ou mais direitos fundamentais (no caso, liberdade e igualdade) para a compreensão do conteúdo e das exigências normativas de outro direito fundamental (no caso, o direito à saúde). Este procedimento, no âmbito da contemporânea teoria dos direitos fundamentais, pode ser denominado método hermenêutico constitucional contextual, para utilizar a expressão de Juan Carlos Gavara de Cara, pois parte da própria Constituição, da conexão e da inter-relação entre as diversas normas de direitos fundamentais. Em suas palavras,


"La formación de una interpretación sistemática de los derechos fundamentales no pude dar lugar a la formación de un sistema que sea axiométrico o lógico deductivo, sine que debe ser el resultado del análisis de las disposiciones de los derechos fundamentales, sus contenidos y las conexiones con otras normas constitucionales."
(Derechos Fundamentales e desarrollo legislativo - la garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1994, p. 116).


Nesta perspectiva jusfundamental, o que se tem que evitar é, para o fim de superar a disforia sexual, afirmar que só é masculino e só é feminino quem atender a uma determinada, rígida, fixa e excludente combinação de características, impostas pelas convicções sociais da maioria ou pela pretensão de um saber médico neutro e objetivo. Tal percepção, intransigente e inflexível, gera violações de direitos fundamentais e é fruto do fechar dos olhos à realidade: a sexualidade e a vida humana não se deixam enquadrar em padrões historicamente definidos por profissionais da saúde ou por representantes da opinião da maioria. A vida humana e suas manifestações são um "continuum", que não se deixam aprisionar em polaridades opostas e compartimentos estanques. No campo da sexualidade, a demonstração mais famosa desta realidade, com enorme impacto científico, social e cultural, veio com o clássico Sexual Behavior in the Human Male, do biólogo Alfred Kinsey, publicado em 1948 e baseado em exaustivo estudo estatístico.


Afirmada a necessidade e a importância da solução do litígio mediante uma interpretação conjunta dos direitos fundamentais envolvidos e de uma compreensão abrangente da transexualidade, passo a examiná-los de modo destacado. Estes são o direito à liberdade, ao livre desenvolvimento da personalidade, à proteção da dignidade humana, à saúde e à igualdade.


Inicio pelo princípio da igualdade, pois a compreensão da transexualidade ora proposta, que alerta sobre os danos produzidos pelo binarismo de gênero, se relaciona diretamente com a proibição constitucional de discriminação e, em especial, com a vedação de discriminação por motivo de sexo.


O princípio da igualdade e a proibição de discriminação por motivo de sexo


O cerne do conteúdo jurídico do princípio da igualdade é a proibição de tratamento discriminatório, vale dizer, a instituição de medidas que tenham o propósito ou o efeito de prejudicar, restringir ou anular o gozo e o exercício de direitos e liberdades fundamentais, em razão de sexo, raça, etnia, cor, idade, origem, religião, bem como outros critérios proibidos de discriminação, em qualquer campo da vida pública ou privada (consoante os termos da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, por exemplo).


Na tradição do direito romano-germânico, o direito de igualdade é compreendido mediante suas dimensões formal (igualdade de todos perante a lei) e material (imposição de tratamento isonômico, observadas as semelhanças e diferenças relevantes, de acordo com as finalidades das distinções); a concretização deste princípio, como mandamento de não-discriminação, tem como uma de suas conseqüências o estabelecimento de critérios proibidos de discriminação (CF, art. 3º, IV), dentre os quais se destaca a proibição por motivo de sexo.


Neste contexto, o litígio requer a compreensão de qual o alcance desta proibição de discriminação por motivo de sexo diante da exclusão das transexuais em face dos procedimentos requeridos nesta ação civil pública dentre aqueles cobertos pelo SUS.


São necessárias duas considerações para responder a esta pergunta. A primeira diz respeito à pertinência da transexualidade ao âmbito de proteção da proibição de discriminação sexual e à existência de tratamento diferenciado entre heterossexuais e transexuais quanto à oferta das cirurgias; a segunda, à possibilidade de inclusão das cirurgias no sistema de saúde (questão que será tratada em tópico próprio, acerca do direito à saúde).


Diante disso, é preciso decompor a primeira consideração em duas partes, quais sejam: (1) a discriminação sofrida por transexuais é hipótese de discriminação por motivo de sexo? e (2) há justificativa suficiente para a exclusão dos indivíduos transexuais da prestação de saúde em questão?


Proibição de discriminação por motivo de sexo e transexualidade


Concretizar a proibição constitucional de discriminação por motivo de sexo requer a pesquisa sobre a presença do fator sexo como elemento desencadeador de tratamentos diferenciados e sobre a compreensão dada ao termo 'sexo'.


De início e em perspectiva histórica, a inclusão do sexo como critério proibido de discriminação decorreu da luta das mulheres pela correção das injustiças sofridas no seio de sociedades machistas. De fato, desde há muito (registre-se, por exemplo, a defesa aristotélica da inferioridade das mulheres - "a força de um homem consiste em se impor; a de uma mulher, em vencer a dificuldade de obedecer" - A Política, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 31), a distinção entre os sexos biológicos se apresenta como pretexto para a dominação masculina. Deste modo, a vedação constitucional de discriminação por motivo de sexo incide, desde seu surgimento, contra a subordinação e a desvantagem experimentadas pelas mulheres, seja em virtude da família patriarcal, seja em virtude do sexismo contemporâneo.


Ao longo da história, a realidade demonstrou ser necessário ir além. Foram se apresentando aos tribunais outras situações onde é inegável reconhecer-se que o sexo é o fator determinante para outras práticas discriminatórias. Exemplos disso são, por exemplo, as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos nos casos Romer v. Evans (1996) e Lawrence v. Texas (2003).


Uma destas situações é a discriminação experimentada por homossexuais. O raciocínio jurídico que afastou a discriminação por orientação sexual por violadora da norma que proíbe a discriminação por motivo de sexo demonstra que, também no caso da transexualidade, está-se diante de discriminação sexual inconstitucional.


Exponho, portanto, a argumentação desenvolvida quanto à proibição de discriminação por orientação sexual, por configurar discriminação por motivo de sexo.


Como referi alhures, "a discriminação por orientação sexual é uma hipótese de diferenciação fundada no sexo da pessoa para quem alguém dirige seu envolvimento sexual, na medida em que a caracterização de uma ou outra orientação sexual resulta da combinação dos sexos das pessoas envolvidas na relação. Assim, Pedro sofrerá ou não discriminação por orientação sexual precisamente em virtude do sexo da pessoa para quem dirigir seu desejo ou conduta sexuais. Se orientar-se para Paulo, experimentará a discriminação; todavia, se dirigir-se para Maria, não suportará tal diferenciação. Os diferentes tratamentos, neste contexto, tem sua razão de ser no sexo de Paulo (igual ao de Pedro) ou de Maria (oposto ao de Pedro). Este exemplo ilustra com clareza como a discriminação por orientação sexual retrata uma hipótese de discriminação por motivo de sexo. Contra este raciocínio, pode-se objetar que a proteção constitucional em face da discriminação sexual não alcança a orientação sexual; que o discrímen não se define pelo sexo de Paulo ou de Maria, mas pela coincidência sexual entre os partícipes da relação sexual, tanto que homens e mulheres, nesta situação, são igualmente discriminados. Este argumento, todavia, não subsiste a um exame mais apurado. Isto porque é impossível a definição da orientação sexual sem a consideração do sexo dos envolvidos na relação verificada; ao contrário, é essencial para a caracterização de uma ou de outra orientação sexual levar-se em conta o sexo, tanto que é o sexo de Paulo ou de Maria que ensejará ou não a discriminação sofrida por Pedro. Ou seja, o sexo da pessoa envolvida em relação ao sexo de Pedro é que vai qualificar a orientação sexual como causa de eventual tratamento diferenciado."(O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual: a homossexualidade no direito brasileiro e norte-americano, São Paulo: RT, 2002, p. 133).


Ademais, o igual tratamento dispensado à homossexualidade masculina e à homossexualidade feminina também não desloca o problema da discriminação por orientação sexual do âmbito da proibição de discriminação por sexo. Ao contrário, em face da impossibilidade de se discutir a orientação sexual (seja masculina, seja feminina) sem a consideração do sexo dos participantes de uma dada relação, tal argumento acaba por querer justificar uma hipótese de discriminação sexual (homossexualidade masculina) invocando outra hipótese de discriminação sexual (homossexualidade feminina), não fornecendo qualquer justificação para a diferenciação. Nas duas hipóteses, o fator decisivo é o sexo dos envolvidos e a discriminação por motivo de sexo protege todas as orientações sexuais.


Este raciocínio já informou decisões judiciais históricas: registro precedentes da Suprema Corte do Canadá (University of Saskatchewan v. Vogel, 1983; Bordeleau v. Canadá, 1989), da Suprema Corte do Hawaii (Baehr v. Lewin, 1993) e da Corte de Apelações da Califórnia (Engel v. Worthington, 1993).


A esta conclusão, a propósito, também chegou este Tribunal Regional Federal. Em precedente unânime desta 3ª Turma (AC 96.04.55333-0), relatado pela eminente Desembargadora Federal Marga Inge Barth Tessler (ementa, item 6):


"A recusa das rés em incluir o segundo autor como dependente do primeiro, no plano de saúde PAMS e na FUNCEF, foi motivada pela orientação sexual dos demandantes, atitude que viola o princípio constitucional da igualdade que proíbe discriminação sexual. Inaceitável o argumento de que haveria tratamento igualitário para todos os homossexuais (femininos e masculinos), pois isso apenas reforça o caráter discriminatório da recusa. A discriminação não pode ser justificada apontando-se outra discriminação."


As razões que demonstram que a discriminação por orientação sexual inclui-se na vedação de discriminação por motivo de sexo conduzem à idêntica solução neste litígio.


Tal é o que já demonstrou a Corte Européia de Justiça, conforme revela o caso C-13/94 (P. v. S. e Cornwall County Council).


O tribunal, analisando hipótese de demissão do emprego sofrida por transexual, ao interpretar disposição de Diretiva comunitária proibindo a discriminação por motivo de sexo no emprego, decidiu (destaco os itens da conclusão do julgamento):


"17. O princípio de igualdade de tratamento 'para homens e mulheres' referido pela Diretiva em seu título, preâmbulo e provisões significa, como os artigos 2(1) e 3(1) indicam em particular, que não deve haver discriminação qualquer em virtude de sexo."
"18. Deste modo, a Diretiva é simplesmente a expressão, no campo relevante, do princípio da igualdade, que é um dos princípios fundamentais do direito comunitário."
"19. Além disso, como a Corte repetidamente decidiu, o direito a não ser discriminado em virtude de sexo é um dos direitos humanos fundamentais cuja observância a Corte tem o dever de assegurar (ver, para este efeito, o caso 149/77 Defrenne v Sabena (No. 3) [1978] ECR 1365, parágrafos 26 e 27, e os casos 75/82 e 117/82 Razzouk and Beydoun v Commission [1984] ECR 1509, parágrafo 16)."
"20. Sendo assim, o escopo da Diretiva não pode ser confinado simplesmente à discriminação baseada no fato de que uma pessoa seja de um sexo ou de outro. De acordo com o seu propósito e a natureza dos direitos que ela procura resguardar, o escopo da Diretiva é também aplicar à discriminação decorrente, como neste caso, da redesignação do gênero da pessoa em questão."
21. Esta discriminação é baseada, essencialmente se não exclusivamente, no sexo da pessoa em questão. Quando tal pessoa é demitida com base naquilo a que ela pretende submeter-se, ou submeteu-se, readequação de gênero, ele ou ela é tratado desfavoravelmente em comparação com pessoas do sexo para o qual se considerava que ele ou ela pertenciam antes de submeter-se à readequação de gênero."
"22. Tolerar tal discriminação seria equivalente, com relação a tal pessoa, ao insucesso na proteção da dignidade e da liberdade por ele ou ela titularizados, aos quais a Corte tem o dever de resguardar."


Extraio alguns trechos do corpo da decisão, dada sua relevância e pertinência ao litígio ora em julgamento:


"O tribunal nacional requer que a Corte determine se, à luz do propósito da Diretiva, como estabelecido no artigo 1º, a demissão de uma transexual em virtude de sua mudança de sexo constitui discriminação proibida pela Diretiva e, de modo mais geral, se o Artigo 3º (1) deve ser interpretado como abrangendo, com relação às condições de trabalho, discriminação contra transexuais.
O tribunal nacional parte da premissa de que a Diretiva, em particular o artigo 3º (1) na medida em que prescreve que 'não haverá discriminação qualquer em virtude de sexo" não significa, ou ao menos não significa necessariamente, que exista discriminação somente entre homem e mulher, mas pode ser interpretado abrangendo também discriminação contra transexuais.
É necessário decidir se somente a discriminação entre homens e mulheres é coberta pela expressão 'discriminação em virtude de sexo' ou, de modo mais genérico, todo tratamento desfavorável conectado ao sexo.
Eu começarei chamando a atenção para a proposição, que é necessário ir além da classificação tradicional e reconhecer que, a par da dicotomia entre homem e mulher, há um espectro de características, comportamento e papéis compartilhados por homens e mulheres, donde sexo em si mesmo tem que ser ao invés compreendido como um 'continum'. Deste ponto de vista, é claro que não seria correto continuar a tratar como ilegítimos juridicamente somente atos de discriminação em virtude de sexo que fossem referidos a homens e mulheres no sentido tradicional destes termos, recusando proteção àqueles que são tratados desfavoravelmente precisamente em virtude de seu sexo e/ou identidade sexual.
Avançar na argumentação, da forma atrativa como colocada, requer uma redefinição de sexo que merece consideração mais profunda em círculos mais apropriados; conseqüentemente, este não é o caminho que eu proponha que seja seguido pela Corte. Eu percebo perfeitamente que desde tempos imemoriais o sexo de uma pessoa tem sido meramente assignado, sem necessidade de definição legal. O direito não gosta de ambigüidades e é certamente mais simples pensar em termos de Adão e Eva.
Tendo disto isto, eu considero como obsoleta a idéia de que o direito deve tomar em consideração e proteger, uma mulher que tenha sofrido discriminação em comparação a um homem, ou vice-versa, mas denegar tal proteção àqueles que são também discriminados contra, novamente em razão do sexo, somente porque eles caem fora da classificação tradicional homem/mulher.
A objeção já muito considerada, e muitas vezes suscitada em diversas ocasiões neste procedimento, é de que não há fator de discriminação sexual, em virtude de que 'transexuais femininas' não são tratadas diferentemente de 'transexuais masculinos'. Em resumo, ambos são tratados desfavoravelmente, daí não haver discriminação alguma. Uma pesquisa da jurisprudência confirma este ponto de vista, com algumas exceções.
Eu não estou convencido desta visão. É bem verdade que mesmo se P. estivesse em situação oposta, ou seja, mudando de mulher para homem, é possível que ela teria sido demitida de todo modo. Um fato, todavia, não é somente possível, como certo: P. não teria sido demitida se ela permanecesse um homem.
Então, como pode ser sustentado que não está presente discriminação por motivo de sexo? Como pode ser negado que a causa de discriminação foi precisamente, e somente, sexo? Para mim, onde houver tratamento desfavorável de uma transexual em relação a (ou causado por) mudança de sexo, há discriminação em razão do sexo ou em virtude do sexo, como preferir.
Nesta matéria, eu não posso fazer outra coisa senão salientar que a proibição de discriminação em virtude de sexo é um aspecto do princípio da igualdade, um princípio que requer que fatores discriminatórios não sejam levados em consideração, principalmente sexo, raça, língua e religião. O que importa é que, em situações como estas, os indivíduos sejam tratados igualmente.
Conseqüentemente, o princípio da igualdade proíbe tratamento desigual entre indivíduos com base em certos fatores distintivos e estes incluem especificamente sexo. Isto significa que a importância não pode e não deveria ser dada ao sexo em si, para influenciar de um modo ou de outro o tratamento dispensado, por exemplo, a trabalhadores.
No caso presente, o que é requerido é ao menos uma aplicação rigorosa do princípio da igualdade para que, deste modo, quaisquer conotações relacionadas ao sexo e/ou à identidade sexual não possam ser, de modo algum, relevantes. Mais ainda, ao tentar justificar sua relevância, seria muito difícil de sustentar, e em todo caso não foi argüido, que as habilidades e o papel da pessoa em questão fossem afetados adversamente por sua mudança de sexo.
Eu deveria acrescentar que, para os propósitos deste caso, sexo é importante como uma convenção, um parâmetro social. A discriminação da qual as mulheres são freqüentemente vítimas não é, é claro, devida às características físicas delas, mas ao invés em seu papel, à imagem que a sociedade tem delas. Daí a justificativa por um tratamento menos favorável é devida ao papel social que se supõe deva ser atendido pelas mulheres e certamente não devido a suas características físicas. Do mesmo modo, deveria ser reconhecido que o tratamento desfavorável sofrido por transexuais é na maior parte das vezes relacionado à imagem negativa, ao juízo moral que nada tem a ver com suas habilidades na esfera do emprego.
Esta situação é ainda menos aceitável quando as mudanças sociais e os avanços científicos feitos nesta área nos anos recentes são levados em consideração. Ainda que seja verdade, como eu já mencionei, que transexuais não são de fato muito significativos em termos estatísticos, é igualmente verdade que por essa razão é vital que eles devem ter ao menos um mínimo de proteção. Sob esta ótica, sustentar que o tratamento desfavorável sofrido por P. não foi em virtude de sexo porque foi em virtude de sua mudança de sexo ou porque neste caso não é possível falar em discriminação entre os dois sexos, seria um subterfúgio e uma interpretação formalística, uma traição à verdadeira essência do valor fundamental e inalienável que é a igualdade.
O que resta a ser determinado é se a Diretiva cujo propósito, de acordo com seus termos, é assegurar a eliminação da discriminação entre homens e mulheres, pode também cobrir o tratamento desfavorável dirigido a transexuais. Em outras palavras, na ausência de legislação específica que expressamente considere as transexuais, dever-se-ia concluir que transexuais - que sofrem discriminação - estão privados de qualquer tipo de proteção legal?
A respeito disto, um julgamento da Corte Constitucional alemã é de interesse; a corte reconheceu - na ausência de legislação pertinente - o direito dos transexuais à mudança de seu status civil. O julgamento declarou: 'Claramente é no interesse da certeza jurídica que a legislatura deveria regular questões concernentes ao estatuto jurídico da pessoa diante da mudança de sexo e de seus efeitos. Mas até que tal legislação seja adotada, a tarefa dos tribunais não é outra senão aquela que decorre do princípio da igualdade entre homens e mulheres em face da vigência de legislação que os coloque em pé de igualdade.'
Primeiramente, transexuais certamente não constituem um terceiro sexo, então deveria ser considerado como questão de princípio que eles são cobertos pela Diretiva, tendo em vista também o supra mencionado reconhecimento do seu direito à identidade sexual.
Em segundo lugar, registro que a Diretiva nada é senão uma expressão de um princípio e um direito fundamental. Aqui eu salientaria que o respeito pelos direitos fundamentais é um dos princípios gerais do direito comunitário, cuja observância a Corte tem o dever de assegurar, e que 'não há dúvida de que a eliminação da discriminação em virtude de sexo forma parte destes direitos fundamentais.'
Quando o problema é expresso nestes termos, parece-me muito claro que a Diretiva, que data de 1976, somente considerou aquilo que podia ser definido como 'realidade normal' ao tempo de sua adoção. É bem natural que ela não deveria ter expressamente considerado a questão e a realidade que está somente começando a ser 'descoberta' neste momento. No entanto, como expressão de um princípio mais geral, segundo o qual o sexo deveria ser irrelevante para o tratamento que cada um recebe, a Diretiva deveria ser construída numa perspectiva mais ampla, incluindo portanto todas as situações nas quais sexo aparece como um fator de discriminação.
O Parlamento Europeu expressou-se no mesmo sentido em uma resolução sobre a discriminação contra transexuais, de 09 de outubro de 1989, na qual, entre outras disposições, ele 'chama a Comissão e o Conselho para tornar claro que as Diretivas comunitárias acerca da igualdade entre homens e mulheres no trabalho também vedam discriminação contra transexuais.'(...)
Enfim, eu tenho bem claro que eu estou pedindo à Corte para fazer um decisão 'corajosa'. Assim o faço, no entanto, na profunda convicção que aquilo que está em questão é um valor fundamental, indelevelmente incrustrado nas modernas tradições jurídicas e nas constituições dos países mais avançados: a irrelevância do sexo de uma pessoa com relação às normas que regulam as relações em sociedade. Quem quer que acredite neste valor não pode aceitar a idéia de que o direito deva permitir uma pessoa ser demitida porque ela é uma mulher, ou porque ele é um homem, ou porque ele ou ela muda de um dos dois sexos (qualquer que seja) para outro por meio de uma cirurgia que, de acordo com o conhecimento médico corrente, é o único remédio capaz de colocar o corpo e a mente em harmonia. Qualquer outra solução soaria mais como uma condenação moral - uma condenação, ademais, em descompasso com a história - da transexualidade, precisamente quando os avanços científicos e as transformações sociais nesta área estão abrindo a perspectiva sobre um problema que certamente transcende o problema moral.
Eu estou bem certo, repito, que não há no direito comunitário qualquer previsão específica e literalmente direcionada para regular este problema; mas tal provisão pode direta e claramente ser inferida dos princípios e objetivos do direito comunitário social, da exposição de motivos da Diretiva salientando 'a harmonização das condições de vida e trabalho e sua manutenção e melhora', e também da jurisprudência desta Corte, que está sempre alerta e cuidadosa em assegurar que pessoas em desvantagem sejam protegidas. Conseqüentemente, eu considero que seria lamentável perder esta oportunidade de deixar uma marca de inegável substância, tomando a decisão que é clara, justa e legalmente correta, ainda mais inegavelmente fundada e em consonância com o grande valor da igualdade."


Em suma, conforme o raciocínio antes exposto, concretizado pela Corte Européia de Justiça, a discriminação sofrida pelas transexuais é hipótese de discriminação por motivo de sexo, uma vez que o fator que provoca o tratamento desfavorável é precisamente o fato de o indivíduo pertencer, agora, a sexo diverso daquele que lhe era anteriormente atribuído.


Há outros dois aspectos de grande relevância, presentes na fundamentação da decisão da Corte Européia de Justiça, que não podem ser negligenciados na solução deste litígio.


São eles: (1) a discriminação por identidade sexual também configura discriminação por motivo de sexo e (2) a discriminação por motivo de sexo refere-se, contemporaneamente, não a caracteres físicos, mas ao papel social, à imagem que é atribuída às mulheres por parte do entorno social.


Com efeito, estas afirmações da Corte Européia de Justiça, tomadas conjuntamente, apontam para a percepção de que tratamentos desfavoráveis decorrentes da chamada "identidade de gênero" são hipóteses de discriminação por motivo de sexo. Isto porque, como demonstra a evolução da compreensão jurídica, discriminação por motivo de sexo concretiza-se, nos dias de hoje, não-só na proibição de tratamento desfavorável a mulheres, homossexuais e transexuais, como também a todas as hipóteses em que "a forma de um indivíduo se perceber e ser percebido pelos outros como masculino ou feminino, de acordo com os significados desses termos construídos pela cultura à qual pertence" seja fator determinante para uma diferença de tratamento desfavorável ao indivíduo ou ao grupo (este o conceito de 'identidade de gênero', exposto pela médica, psicanalista e antropóloga Profa. Elizabeth Zambrano, in Lima, Antônio Carlos de Souza (org.), Antropologia e Direito: Bases Para um Diálogo Interdisciplinar; Brasília, Associação Brasileira de Antropologia, 2007, no prelo).


Como dito, e não custa insistir, a correta compreensão do que seja discriminação por motivo de sexo é de grande relevância, uma vez que a Constituição exige que a solução jurídica deste litígio seja aquela que confira, simultaneamente, a maior eficácia possível aos diversos direitos fundamentais pertinentes.


Assim sendo, um juízo de procedência do pedido deve concretizar os diversos direitos fundamentais invocados a partir de uma perspectiva capaz de contemplar a força normativa da Constituição como um todo. No caso, esta solução só é alcançada se o acolhimento do pedido fizer valer, na maior medida possível, os direitos de liberdade, de igualdade, de proteção da dignidade humana e o direito à saúde ao mesmo tempo. Este resultado é obtido com o reconhecimento do pedido a partir da constatação de que a exclusão das transexuais dos procedimentos médicos requeridos, materializada na ausência de previsão na Tabela SIH-SUS, configura discriminação por motivo de sexo e ofensa ao direito de liberdade e ao direito à saúde. Para tanto, é preciso compreender adequadamente a proibição de discriminação por motivo de sexo, alcançando suas diversas manifestações: os tratamentos desfavoráveis experimentados por heterossexuais em virtude de seu sexo biológico e gênero, por homossexuais em virtude de sua orientação sexual, por travestis e transexuais em virtude de sua identidade de gênero.


De fato, como esclarece a citada Elizabeth Zambrano, sumariando o estado da arte na discussão contemporânea sobre sexo e gênero,


"O senso comum considera que uma pessoa, ao ser classificada como homem ou mulher (sexo biológico), terá, naturalmente, o sentimento e o comportamento masculino ou feminino (identidade/papel de gênero) e o seu desejo sexual será dirigido para pessoas do sexo e/ou gênero diferente do seu (orientação heterossexual). Esses três elementos - sexo, gênero e orientação - são pensados, em nossa cultura, como estando sempre combinados de uma mesma maneira - homem masculino heterossexual ou mulher feminina heterossexual. É possível, entretanto, inúmeras combinações entre eles.
Uma delas é a homossexualidade, termo referente a pessoas que praticam sexo com pessoas do mesmo sexo. Essas pessoas têm orientação sexual diferente da esperada para o seu sexo e gênero, mas isso, não necessariamente, indica uma mudança de 'identidade de gênero'. Elas não se percebem nem são percebidas pelos outros como de um gênero (masculino ou feminino) diferente do seu sexo (homem ou mulher), mesmo com comportamentos considerados ambíguos (homem afeminado ou mulher masculinizada).
Já homens que fazem uso de roupas e modificações corporais para se parecer com uma mulher, sem buscar uma troca de sexo cirúrgica são considerados travestis. Travestis, aceitando seu corpo biológico de homem (embora modificado, às vezes, pelo uso de hormônios femininos e/ou implantes de silicone) e se percebendo como mulheres, reivindicam a manutenção dessa ambigüidade corporal, considerando-se, simultaneamente, homens e mulheres; ou se vêem 'entre os dois sexos' nem homens, nem mulheres. Todos, porém, se percebem como tendo uma identidade de gênero feminina.
Outra combinação possível diz respeito aos transexuais, pessoas que afirmam ser de um sexo diferente do seu sexo corporal e fazem demanda de 'mudança de sexo' dirigida ao sistema médico e judiciário.
É muito comum homossexuais, travestis e transexuais serem percebidos como fazendo parte de um mesmo grupo, numa confusão entre a orientação sexual (homossexualidade, heterossexualidade, bissexualidade) e as 'identidades de gênero' (homens masculinos, mulheres femininas, travestis, transexuais femininos e masculinos, entre outras).
Todos os indivíduos que reivindicam um gênero que não apoiado no seu sexo podem ser chamados de 'transgênero'. Estariam incluídos aí, além de transexuais que realizaram cirurgia de troca de sexo, travestis que reconhecem seu sexo biológico, mas têm o seu gênero identificado como feminino; travestis que dizem pertencer a ambos os sexos/gêneros e transexuais masculinos e femininos que se percebem como homens ou mulheres mas não querem fazer cirurgia. A classificação de suas práticas sexuais como homo ou heterossexuais estará na dependência da categoria que estiver sendo considerada pelo indivíduo como a definidora de sua identidade (o sexo ou o gênero)."
(in Lima, Antônio Carlos de Souza (org.), Antropologia e Direito: Bases Para um Diálogo Interdisciplinar; Brasília, Associação Brasileira de Antropologia, 2007, no prelo).


Diante desta clareza conceitual e do didatismo na descrição dos fatos, demonstrando o quanto sexo e gênero são dados e fenômenos que necessitam ser apanhados e percebidos conjunta e indissociavelmente (em idêntico sentido, Nicole-Claude Mathieu, 'Anthropologie et Homosexualités', Homoparentalités, état dês lieux, Paris: Eres, 2005, p. 23-29), sob pena de nos tornarmos cegos à dinâmica das relações sociais e incapazes para a averiguação da existência ou não de discriminação, permito-me sintetizar: a solução jurídica para este litígio, conforme os princípios contemporâneos de interpretação constitucional (especialmente a força normativa da Constituição), requer a a compreensão da proibição de discriminação por motivo de sexo abrangendo os tratamentos desfavoráveis experimentados por heterossexuais em virtude de seu sexo biológico e gênero, por homossexuais em virtude de sua orientação sexual, por travestis e transexuais em virtude de sua identidade de gênero.


Assim fazendo, o juízo de procedência do pedido empresta a maior eficácia possível a todos os direitos fundamentais envolvidos, resultando na otimização dos direitos fundamentais da igualdade, da liberdade, da proteção à dignidade humana e da saúde. Se tomássemos outro caminho, restringindo a questão a direito à readequação sexual, por intervenção cirúrgica, simplesmente para confirmar o binarismo sexual e gênero tradicionalmente vigentes, teríamos como resultado o enfraquecimento de todos os direitos fundamentais invocados, com a legitimação e reprodução de uma série de graves violações a direitos fundamentais de homens e mulheres heterossexuais, homossexuais, travestis e transexuais.


Não bastassem estes fatos e argumentos, derivados das pré-compreensões que foram se concretizando ao longo da história jurídica moderna e contemporânea acerca da discriminação por motivo de sexo, é importante registrar que a utilização da categoria "gênero" para designar as realidades envolvendo a sexualidade e os papéis e representações sociais a ela relacionados já consta do direito positivo brasileiro.


É o que se vê na Lei nº 11.340/2006 ("Lei Maria da Penha"), que, nos termos do art. 226, p. 8º, da CF/88, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulheres, criou uma série de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, instituindo políticas públicas e novos órgãos judiciais, além de alterar o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal. Ao lado do artigo 8º, que nos seus incisos cuidam da perspectiva de gênero em diversas políticas públicas (educação, saúde e segurança), destaco o texto do artigo 5º, que toma o gênero como categoria central para a conceituação jurídica da violência contra a mulher:


Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.


Há justificativa plausível para a distinção de tratamento entre transexuais e não-transexuais quanto às cirurgias de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia?


Assentada a pertinência da transexualidade à proibição de discriminação por motivo de sexo, tem-se como conseqüência normativa a inconstitucionalidade, por ofensa ao princípio da igualdade, do tratamento desfavorável a transexuais, consubstanciado na exclusão do âmbito do SUS das cirurgias de transgenitalização dos tipos neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, uma vez que disponibilizados aos demais indivíduos e grupos, salvo se houver razões suficientes para justificar este tratamento diferenciado.


Conforme o conteúdo jurídico do princípio da igualdade, a questão passa a ser a existência ou não de justificativa para a aludida exclusão. Com efeito, o que o princípio da igualdade impõe é um ônus de argumentação suficiente para que tratamentos desiguais se legitimem, sancionando a ausência de argumentos suficientes com a ilicitude. Dito de outro modo: o conteúdo jurídico do princípio da igualdade obriga a um tratamento igual, a menos que haja razões suficientes para um tratamento desigual.


Quais seriam, então, as justificativas para a exclusão?


As cirurgias de neocolpovulvoplastia e de neofaloplastia são procedimentos médicos ofertados no âmbito do SUS, em princípio, a todos os indivíduos que delas necessitarem; nesta demanda, a defesa defende a improcedência do pedido alegando que a disponibilidade dos procedimentos para cirurgia corretiva nos casos de lesão grave na genitália e a indisponibilidade para transexuais não ofende a isonomia, na medida em que a distinção não tem relação com o sexo do paciente, mas sim com a natureza da doença, sendo evidente a diferença entre uma lesão grave na genitália e o transexualismo.


Esta justificativa, no entanto, não resiste a um exame mais cuidadoso. Não importa qual perspectiva for adotada (estritamente biomédica ou ampla da transexualidade), ela improcede.


Com efeito, adotada a primeira perspectiva, o transexualismo, como referiu a defesa (note-se que aqui o termo ganha o sufixo 'ismo', denotando caráter doentio) é doença diversa dos casos de lesão grave na genitália, para os quais há a previsão dos procedimentos na tabela do SUS. Doenças diversas, portanto, merecem tratamentos diversos: eis a conclusão que justificaria a diversidade de tratamento para as situações diversas.


Com a devida vênia, este raciocínio é equivocado: o fato relevante é que se trata de doenças (diversas, que sejam) que exigem, medicamente, os mesmos procedimentos cirúrgicos: neocolpovulvoplastia e neofaloplastia. Ou seja, ao invés de diversidade de situações, há identidade: diante de quadros doentios, deve-se dispensar o mesmo tratamento médico, uma vez que este é o tratamento adequado e recomendado. O que não teria sentido é querer prover a doença, seja qual for, com tratamento inapropriado. Os juízos de igualdade e de desigualdade, conforme a dimensão material do princípio da isonomia, exigem tratamento igual a situações que apresentam semelhança relevante. Eis a semelhança relevante: ambas são situações de doença cuja prescrição médica é o mesmo tratamento.


Onde está, portanto, a diferença que justificaria o tratamento diferenciado? Além de serem doenças que exigem o mesmo tratamento médico, a finalidade da norma é exatamente prover os doentes das prestações de saúde necessárias. Esta finalidade está atendida, uma vez que presente seu pressuposto fático: ambas são situações de doença que requerem o mesmo procedimento médico.


Se adotarmos a perspectiva mais ampla, a inclusão dos procedimentos na tabela do SUS se fundamenta nos vários direitos fundamentais invocados, seja como prestação de saúde, referente à transgenitalização médica derivada do estado mórbido de alguém que padece de disforia de gênero, seja como medida de combate à discriminação por motivo de sexo.


Nesta linha, também não socorre à defesa o argumento de que não haveria discriminação, uma vez que transexuais masculinos e femininos são tratados igualmente. Este raciocínio, como visto acima, não resiste à constatação de que é precisamente o sexo o único fator objeto de alteração que acarreta o tratamento desfavorável. De fato, é impossível a constatação da transexualidade sem a consideração do sexo; ao contrário, é este o elemento essencial que se leva em conta. Ademais, o igual tratamento dispensado a transexuais masculinos e femininos também não desloca o problema da discriminação por orientação sexual do âmbito da proibição de discriminação por sexo. Ao contrário, em face da impossibilidade de se discutir a transexualidade sem a consideração do sexo, tal argumento acaba por querer justificar uma hipótese de discriminação sexual (transexualidade masculina) invocando outra hipótese de discriminação sexual (transexualidade feminina), não fornecendo qualquer justificação para a diferenciação. Nas duas hipóteses, o fator decisivo é o sexo dos envolvidos e a discriminação por motivo de sexo protege todas as hipóteses de transexualidade. Nesta linha, relembro, também concluiu a Corte Européia de Justiça, conforme atestam os excertos acima reproduzidos.


Aquilo que talvez esteja subjacente ao argumento esgrimido pela defesa é a dúvida quanto à legitimidade da mudança de sexo. Tanto que, a certa altura, a União menciona a existência de controvérsia sobre o efeito mutilador da cirurgia e seu caráter experimental. Ela também sustenta a impossibilidade do atendimento do pedido, invocando a reserva do possível e o caráter meramente programático da norma constitucional que assegura o direito à saúde. Estes argumentos merecem exame, a ser realizado quando da consideração de outros direitos fundamentais pertinentes ao caso: os direitos de liberdade, de privacidade, de livre desenvolvimento da personalidade, da proteção da dignidade humana e o direito à saúde.



Liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, respeito à dignidade humana, privacidade e transexualidade


O pedido veiculado pelo Ministério Público Federal tem relação direta com o exercício do direito fundamental de liberdade pelos cidadãos transexuais, envolvendo o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, à privacidade e ao respeito à dignidade humana. Cuido destes princípios conjuntamente, uma vez que compartilham o valor fundamental da liberdade humana, positivado na ordem constitucional vigente.


A liberdade é, ao lado da igualdade, um dos princípios básicos das declarações de direitos humanos e do constitucionalismo clássico, cuja afirmação implica o reconhecimento da dignidade de cada ser humano de orientar-se, de modo livre e merecedor de igual respeito, inclusive na esfera de sua sexualidade (tentei estruturar estes e outros princípios jurídicos numa abordagem de dogmática constitucional e direitos fundamentais em face da sexualidade no capítulo 'Notas para o desenvolvimento de um direito democrático da sexualidade', Em Defesa dos Direitos Sexuais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007). Conseqüência disto é o romper com o tratamento subalterno reservado a mulheres, homossexuais, travestis, soropositivos para o vírus HIV, e, neste caso concreto, a transexuais, percebidos numa visão tradicional, autoritária e discriminatória como objetos de regulação ao invés de sujeitos de direitos.


A sexualidade, por sua vez, é uma esfera da vida individual protegida da interferência de terceiros, configurando âmbito protegido pelo direito à privacidade, como repetidamente vêm decidindo, há décadas, a Corte Européia de Direitos Humanos e a Suprema Corte dos Estados Unidos (para um escorço histórico e análise dogmática dos precedentes mais importantes, ver Robert Wintemute, Sexual Orientation and Human Rights, Oxford: Clarendon Press, 1995)


Por economia e pela excelência dos fundamentos, valho-me, a esta altura, de alguns dos muitos bem articulados argumentos desenvolvidos na inicial.


Conforme transcreve e traduz o MPF, o Tribunal Constitucional Federal alemão considerou ofensiva da dignidade humana e do livre desenvolvimento da personalidade a recusa estatal em permitir a mudança de identificação de sexo nos documentos de pessoas submetidas à mudança de sexo: "Dignidade humana e o direito constitucional ao livre desenvolvimento da personalidade exigem, então, que o sexo civil de alguém seja governado pelo sexo com o qual ele está identificado psicologica e fisicamente." (fl. 31).


No mesmo sentido, noticiou decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que considerou violadora do direito à privacidade a recusa de tribunal francês a pedido de retificação de certidão de nascimento, para que fosse indicada a mudança de sexo e o novo nome feminino de transexual submetida à cirurgia de troca de sexo (fl. 31).


Na linha destes argumentos e precedentes jurisprudenciais, é de se reforçar a relação entre o direito de liberdade e a dignidade da pessoa humana.


Para tanto, lanço mão dos argumentos de José Reinaldo de Lima Lopes, cuja lição alerta sobre a liberdade (ou autonomia):


"...é uma razão bastante forte para defender o fim das discriminações pelo exercício da liberdade sexual, dessa parte da vida que nos liga diretamente a outro ser humano e indiretamente a todos seres humanos. A autonomia tem uma história recente entre nós. Não terá mais do que duzentos anos como idéia-força da vida social e da moral pública. Essa história recente é ainda mais recente e frágil em sociedades como a brasileira, em que não é difícil encontrar os que afirmam que a autonomia e as liberdades civis não são as primeiras questões de nossa vida pública.(...) Creio que não há nada de questão menor nesse ponto. Nesse ponto, creio que dizer algo nesse sentido, que a liberdade individual, inclusive a liberdade sexual é menor ou pode esperar, significa colocar a pessoa humana abaixo de objetivos falsamente mais altos. O argumento é típico dos que não valorizam a autonomia e acreditam que alguém está acima do próprio sujeito para determinar-lhe a vida. O argumento é encontradiço entre os que têm convicções religiosas (sejam elas religiosas no sentido vulgar, sejam elas convicções políticas com o caráter absoluto da verdade típico das convicções religiosas). A falsidade disso está em que essa espécie pressupõe muitas vezes um todo universal ('a sociedade') que existe acima e fora dos sujeitos que o compõem. Ora, a noção de autonomia que fundou o constitucionalismo moderno rejeita esta idéia normativa. Para o liberalismo, as pessoas não existem para a sociedade, para a família, para a tradição, para a religião, para uma outra coisa qualquer. Logo, não se pode, sem boas razões, submeter a autonomia dos sujeitos a fins que ele não escolheu e cuja realização não elimina a possibilidade de outros escolherem e realizarem fins diferentes. A liberdade, compreendida no limite do respeito simultâneo e compatível com igual liberdade de outrem, não é objeto de transação, pois se trata de um fim inerente à própria natureza humana, cuja proteção é a razão de um estado de direito constitucional." ('Liberdade e direitos sexuais - o problema a partir da moral moderna', Em Defesa dos Direitos Sexuais, org. Roger Raupp Rios, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 62-3).


Com efeito, a proteção jurídica que a norma constitucional protetiva da dignidade humana proporciona é, dentre outros conteúdos, a garantia de que o sujeito será respeitado como um fim em si mesmo, ao invés de ser concebido como um meio para a realização de fins e de valores que lhes são externos e impostos por terceiros. Vale dizer, é levar a sério a autonomia individual, que possibilita conduzir-se conforme suas próprias convicções e projetos pessoais (respeitados, é claro, direitos de terceiros), livre de imposições externas e de condicionamentos decorrentes de visões de mundo alheias. Para o caso, isto implica que visões de mundo heterônomas, que objetivem impor aos indivíduos transexuais limites e restrições vinculadas a concepções de mundo metafísicas ou políticas, com repercussão no acesso aos procedimentos cirúrgicos, estão em desacordo com os direitos fundamentais de liberdade e de proteção à dignidade humana.


A afirmação da pertinência destes princípios jurídicos ao caso em julgamento demonstra a relevância do pedido veiculado na ação civil pública. Com efeito, a não-inclusão dos procedimentos na tabela do SUS cria dificuldades concretas com impacto restritivo dos direitos fundamentais da liberdade, da não-discriminação, do livre desenvolvimento da personalidade, da privacidade e da dignidade humana. Há, portanto, forte carga argumentativa em favor do requerido pelo MPF, uma vez que somente princípios tão fortes quanto estes serão capazes de prevalecer, em juízo de ponderação, diante do pleito ajuizado.


Os procedimentos cuja cobertura é requerida pelo SUS devem ser vistos não-só como intervenções médicas objetivando a superação de um quadro de sofrimento intenso, derivado da tensão insuportável do convívio determinadas características morfológicas; eles são também exercício de um direito fundamental de liberdade, titularizado por todo o indivíduo, de desenvolver-se de modo autônomo diante de convenções sociais que lhes são impostas pelo meio circundante.


Tais constrangimentos sociais, no caso, derivam de uma "naturalização" do binarismo de gênero, fruto do ambiente cultural, como se o ser humano não pudesse construir suas vivências de modo mais rico e variado do que uma rígida, fixa e pré-determinada descrição de papéis, atribuídas de forma heterônoma e homens e mulheres.


De acordo com a metodologia jurídica, esta dinâmica configura verdadeiro processo de concretização do direito fundamental à liberdade, que se expressa no livre desenvolvimento do indivíduo e no direito à identidade sexual, tudo em respeito à dignidade da pessoa humana, garantia constitucional que não se compadece com o desejo de que terceiros determinem os fins da vida alheia.


Respeitar a dignidade humana em casos que tais, a propósito, já foi objeto de atenção da jurisprudência de tribunais estaduais. Precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, considerou procedente a alteração de sexo e de registro civil, salientando a pertinência não-só da dignidade humana, como também da proibição de discriminação:


"REGISTRO CIVIL - Retificação - Assento de nascimento - Transexual - Alteração na indicação do sexo - Deferimento - Necessidade da cirurgia para a mudança de sexo reconhecida por acompanhamento médico multidisciplinar - Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a manutenção do estado sexual originalmente inserto na certidão de nascimento - Negativa ao portador de disforia do gênero do direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a conseqüente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento que acaba por afrontar a lei fundamental - Inexistência de interesse genérico de uma sociedade democrática em impedir a integração do transexual - Alteração que busca obter efetividade aos comandos previstos nos artigos 1º, III, e 3º, IV, da Constituição Federal - Recurso do Ministério Público negado, provido o do autor para o fim de acolher integralmente o pedido inicial, determinando a retificação de seu assento de nascimento não só no que diz respeito ao nome, mas também no que concerne ao sexo".
(Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 209.101-4)


A maioria dos precedentes que defere alteração de nome e de sexo no registro civil, muitos deles do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, apega-se mais à solução do transtorno de gênero, sem avançar quanto aos argumentos de autonomia e direito à identidade de gênero (AC 70000585836, AC 591019831, AC 70011691185, AC 70013909874 - para uma análise percuciente das tendências e limites destas decisões, Miriam Ventura, 'Transexualidade: algumas reflexões jurídicas sobre a autonomia corporal e autodeterminação da identidade sexual', Em Defesa dos Direitos Sexuais, 2007, p. 141).


Dentro deste contexto, onde se abrem múltiplas possibilidades ao desenvolvimento de cada ser humano, os referidos procedimentos médicos se qualificam como recurso importante e necessário para a efetividade de vários direitos fundamentais até aqui examinados (igualdade, liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade, respeito à dignidade); resta, assim, examinar o pedido à luz do direito fundamental à saúde, tarefa a que agora me proponho.




Direito à saúde e transexualidade


A primeira questão que se coloca neste tópico é a alegada impossibilidade de reconhecimento do direito pleiteado, uma vez que o direito à saúde seria norma cuja eficácia limitada reclama intervenção legislativa e administrativa, sem o que não há como serem exigidas prestações positivas derivadas diretamente da Constituição.


Este argumento não procede. A um, porque, sendo direito fundamental, o direito à saúde tem eficácia e aplicabilidade imediata, nos termos do parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição; a dois, porque, no caso, existe atuação legislativa e administrativa que desenvolveu o Sistema Único de Saúde, diante do qual a atuação judicial é requerida e prevê, inclusive, as cirurgias de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia.


Examino destacadamente cada um destes pontos.


Em sua primeira geração de direitos, o constitucionalismo clássico não previa direitos a prestações positivas fáticas por parte do Estado; todavia, com o desenvolvimento do Estado Social e seus reflexos no direito constitucional, foram consagrados tais direitos, conhecidos como direitos sociais, titularizados pelos indivíduos (esta a segunda geração dos direitos fundamentais). A dinâmica social e jurídica foi ainda mais além, inaugurando-se a terceira geração de direitos fundamentais: consagrou-se a proteção coletiva desses direitos individuais e a proteção de direitos coletivos, agora de titularidade metaindividual (STF, MS nº 20.936/DF, relator Ministro Celso de Mello).


O pedido ora veiculado relaciona-se diretamente ao direito fundamental à saúde, passível de proteção individual e coletiva; como visto, a providência do MPF nesta ação civil pública oportunizará a indivíduos a concretização de seu direito individual à saúde, como também envolve concretização de direito metaindividual, qual seja, a correção da tabela do SUS, medida a que nenhum indivíduo isoladamente faz jus, mas é devida pelo Estado diante da categoria de indivíduos transexuais, configurando típico direito coletivo, na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acima transcrita.


A alegação de que o direito à saúde é norma meramente programática e, portanto, incapaz de produzir direitos e deveres entre os cidadãos, individual ou coletivamente, e o Estado, já foi superada no atual estágio do constitucionalismo contemporâneo.


Com efeito, ainda que não haja dúvida quanto à relevância da tarefa da legislação e da administração no desenvolvimento do direito à saúde, sem o que a efetividade deste direito fica em muito comprometida para a coletividade, a doutrina também reconhece a possibilidade da eficácia direta de direitos fundamentais sociais, pelo menos em casos onde as prestações são de importância grave para seus titulares e não há risco de provocar crise financeira muito grave (neste sentido, por exemplo, Robert Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 494 e seguintes).


Pode-se, neste sentido, afirmar a eficácia de direitos fundamentais sociais, donde se inclui, pelo menos, um mínimo de assistência médica, que prevalece inclusive quando ponderado em face de outros princípios, como a competência orçamentária do Parlamento (neste sentido, por exemplo, Ingo Sarlet, 'Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988', Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, nº 30, p. 97, 1999).


A jurisprudência de tribunais constitucionais também vai neste sentido.


Cito duas cortes nacionais, cuja pertinência é direta para a compreensão do caso concreto: o Supremo Tribunal Federal, por razões óbvias e a Corte Constitucional da Colômbia, respeitado tribunal latino-americano que enfrenta realidade institucional, econômica e social bastante similar à brasileira.


De fato, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de afirmar que (AgRg no Recurso Extraordinário nº 271.286-8, DJU 24.11.2000, relator Ministro Celso de Mello):


1)
"O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (artigo 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve zelar, de maneira responsável, o poder público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir aos cidadãos, inclusive aqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico hospitalar."
2)
"O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atenção no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional."
3)
"A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. O caráter programático da regra inscrita no artigo 196 da carta política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o poder público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado."


Na esteira desta decisão, registram-se inúmeros precedentes, tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto deste Tribunal Regional Federal da 4ª Região.


Por sua vez, a Corte Constitucional da Colômbia decidiu pelo direito à prestação positiva de saúde, decorrente diretamente da Constituição, titularizado por cidadão submetido a situação de necessidade vital cuja não-satisfação lesiona sua dignidade humana em grau elevado (Sentencia nº T-533, de 1992, disponível em http://www.constitucional.gov.co/corte/, em 10 de julho de 2006).


Estas ponderações têm aplicação direta ao caso concreto. A prestação positiva requerida diz respeito a procedimento necessário para o exercício de vários direitos fundamentais. Tal prestação, além disso, tem relação direta com o direito à saúde, entendido como bem-estar físico, psíquico e social do indivíduo, na linha da definição de saúde definida pela Organização Mundial de Saúde.


Mais que isso: a prestação de saúde requerida é de vital importância para a garantia da sobrevivência e de padrões mínimos de bem-estar dos indivíduos que dela necessitam e se relaciona diretamente ao respeito da dignidade humana.


A fundamentação ora desenvolvida é de grande relevância para o caso, uma vez que, diversamente daquilo que concluiu a sentença, a atuação judicial aqui não é a de"legislador positivo", em invasão da competência constitucional do Parlamento ou da Administração. Trata-se, ao contrário, de respeitar a eficácia do direito já existente, que é o direito fundamental, previsto na "Lei das leis", a Constituição. Cuida-se, deste modo, não de ultrapassagem dos limites da atribuição constitucional da jurisdição, mas, ao contrário, de cumprimento da mais importante missão de juízes e de tribunais, que é zelar pelos direitos fundamentais.


Neste ponto, a propósito, fica clara a impropriedade da preocupação de que o pedido não possa ser acolhido em virtude da chamada "reserva do possível", ou seja, da impossibilidade de demandar prestação jurídica positiva que onere demasiadamente e desproporcionalmente os cofres públicos, impondo-lhes encargos acima de suas capacidades. Em primeiro lugar, pelo fato de que os casos envolvendo transgenitalização são numericamente muito pequenos e, em segundo lugar e muito relevante, porque o SUS já destina recursos para tais cirurgias, somente excluindo de seu âmbito, todavia, transexuais. Não se está inovando ou impondo novas despesas ao Poder Público, mas simplesmente corrigindo discriminação contra grupo numericamente restrito de cidadãos, para quem o acesso aos procedimentos médicos é vital.


Todas estas circunstâncias certificam que, no caso concreto, não há qualquer justificativa que possa repelir a juridicidade do pedido veiculado.


Neste passo, é de se registrar que, ainda que não se admitisse qualquer eficácia direta e aplicabilidade imediata ao direito fundamental à saúde (o que é incorreto em face da doutrina e da jurisprudência constitucionais contemporâneas), é correto pontuar que o caso pode ser compreendido como hipótese de reconhecimento de direito derivado à saúde.


Com efeito, ao passo que a postulação de um direito originário à saúde requer o reconhecimento de efeitos diretos da norma de direito fundamental em face do caso concreto, imediatamente justiciáveis, independente da atividade legislativa e administrativa concretizadoras, direitos derivados são


"direitos dos cidadãos a uma participação igual nas prestações estaduais concretizadas por lei segundo a medida das capacidades existentes. Os direitos a prestações passam, naquilo em que constituem a densificação de direitos fundamentais, passam a desempenhar uma função de 'guarda de flanco' (J. P. Muller) desses direitos garantindo o grau de concretização já obtido." (Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 7ª ed., p. 479).


Nesta perspectiva, o direito pleiteado é a correção de uma discriminação lesiva aos direitos de liberdade, saúde e dignidade humana de transexuais, efetuada pelo fato de o sistema público de saúde não oferecer a estes cidadãos certos procedimentos médicos da mesma que aos demais oferece.


No caso concreto, o acesso à prestação de saúde requerida, entendido como direito derivado, é obtido judicialmente em virtude da proteção jurídica-fundamental típica dos direitos clássicos de liberdade e não-discriminação (ditos direitos negativos), pois, como decidiu o Tribunal Constitucional português, "a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passam também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social."


Esta, precisamente, a hipótese: as cirurgias requeridas já existem e são prestadas como procedimento remunerado aos hospitais pelo SUS; a exclusão das transexuais deste regime está proibida constitucionalmente, em virtude dos direitos fundamentais de liberdade, igualdade e respeito à dignidade, que obrigam o Estado a não excluí-las. Para se acolher o provimento requerido, portanto, basta que o Estado se abstenha de atentar contra a realização do direito social já existente, pelo que a proteção judicial, aqui, dá-se no quadro típico da garantia dos direitos fundamentais clássicos.


Com efeito, como já demonstrei, não há justificativa passível de fundamentar o tratamento desfavorável, excludente, em face da proibição constitucional de discriminação por motivo de sexo. A primeira alegação produzida pela defesa já foi repelida acima, quando tratei do princípio da igualdade e afastei o argumento segundo o qual não há discriminação contra qualquer transexual porque a sua situação é diversa dos demais cidadãos que se submetem a tais cirurgias. A segunda barreira, relacionada à reserva do possível, também não se aplica ao caso.


Resta, neste momento, ponderar outras duas razões, ainda pendentes de análise: a proibição penal de intervenção mutiladora e o alegado caráter experimental dos procedimentos cirúrgicos de transgenitalização.


Segundo a defesa, a criminalização da intervenção transgenitalizadora decorreria do efeito mutilador do procedimento. Esta objeção não é nova e foi há muito superada. Por economia, reproduzo aqui a lição do Professor Heleno Fragoso, colacionada na inicial:


"11. A cirurgia no transexual visa a ajustar o seu físico ao sexo a que corresponde se psiquismo. Surgem, daí, problemas jurídicos importantes, na esfera criminal, e, principalmente, na civil. Nesta, trata-se de saber se é possível a mudança de estado civil, para que prevaleça, em relação ao transexual, o seu novo sexo, em todos os atos para os quais tem ele relevância na vida civil.
12. Interessa-nos aqui, no entanto, apenas os problemas criminais, que são, apesar da controvérsia na fundamentação jurídica, não há dúvida de que na intervenção cirúrgica realizada com o consentimento expresso ou tácito, em caso de interesse médico, não há crime.
13. A doutrina, entre nós, resolve, geralmente, a hipótese como exercício regular do direito. Assim, por todos os autores, veja-se a lição de Nélson Hungria (Comentários, I, 1/310, que resolve com base no art. 19, III, do CP o caso de "lesão corporal decorrente da operação cirúrgica (ainda que não seja para evitar perigo de vida, mas consciente o enfermo) nos casos aconselhados pela arte médica (cujo exercício é autorizado pelo Estado)".
A solução com base no exercício regular de direito é, no entanto, imperfeita, como observa Vassali ('Algumas consideraciones sobre el consentimiento del paciente y el estado de necessidad em el tratamiento médico-quirúrgico', 'Nuevo Pensamiento Penal', 1/48, ano 2, 1973). Nenhuma das normas gerais que se invocam para justificar foi criada com vista ao tratamento médico. Há falta de expressa regulação legal fixando os limites e os pressupostos da intervenção, para proteger o médico de boa-fé de perseguições indevidas.
14. Esses pressupostos (do exercício regular de direito na intervenção cirúrgica) são dois. O primeiro é o consentimento; o segundo é o interesse ou recomendação médica.
Assim, Vassali (ob. Cit. p.51): 'O critério primário é o do consentimento'.
No mesmo sentido, com indicação de bibliografia, Maggiore, 'Diritto Penale', Bolonha, Zanichelli, 1949, p. 334; Bettiol, 'Dirito Penale', Pádua, CEDAM, 1976, p. 322.
15. Muitos entendem que o consentimento opera, nessa hipótese, como causa autônoma de exclusão da ilicitude, proclamando-se a disponibilidade da integralidade corporal, se não há ofensa ao que se convencionou chamar de 'moral e bons costumes'. Assim, Bettiol (ob. cdCit. p. 306): 'Quando, invece, soggetto passivo del presunto delitto di lesioni è anche il soggetto che esprime il consenso, nessun limite legale dovrebbe sussistere alla liberadisponibilità del proprio corpo'.
O Código Penal alemão (§226, 'a') expressamente exclui, pelo consentimento, a ilicitude da lesão corporal.
O consentimento é expressamente previsto na legislação argentina como condicionante da legitimidade da intervenção curativa. Cf. José Severo Caballero, 'El consentimento del ofendido', 'Cuadernos de los Institutos' 93/107, Universidad Nacional de Córdoba,1967.
16. O segundo pressuposto é constituído pelo critério da recomendação médica ou do interesse curativo ou reparador. Costumava-se falar, aqui, em 'necessidade', mas é óbvio, diante da cirurgia plástica, que a necessidade nesta matéria tem de ser entendida como recomendação ou interesse médico, que abrange também a cirurgia reparadora de deformidades e, inclusive, a cirurgia estética. Nesse sentido é que Paul Lombard ('Le Médicin devant ses Juges', Paris, Robert Laffont, 1973, p. 129) se refere a 'intérêt médical'.
17. No caso em exame estão presentes os pressupostos do consentimento e da recomendação médica. A prova quanto a esta última é uniforme, idônea e autorizada. Os juristas não têm competência para discuti-la e não a podem pôr em dúvida, particularmente se não há controvérsia. Eminentes Professores de Medicina Legal, como Armando Cânger Rodrigues e Hilário Veiga de Carvalho, avalizam a opinião comum, declarando que a cirurgia foi terapêutica.
18. Se não se admite a exclusão de ilicitude pelo exercício regular do direito, a absolvição nos parece inevitável, por ausência de dolo. Já o velho Carrara ('Programma', §1.405) dizia que a verdadeira razão de inocência de tais atos reside na ausência de dolo.
O médico não age para causar dano, mas exatamente no sentido oposto; para curar ou minorar um mal. (...)
Pela exclusão do dolo, os finalistas excluem a tipicidade da lesão corporal no tratamento curativo, e isso corresponde, pode-se dizer, à natureza das coisas. Quem quer curar não quer ferir. Welzel, ('Deutsches Strafrect' Berlim, Gruyter, 1969) é enfático: 'Os tratamentos curativos adequados à arte e indicados pelo médico não são, absolutamente, lesões corporais'.
Maurach (on. Cit. p.407) também é claro: "A ciência mantém unanimemente o critério segundo o qual a intervenção médica não requer causa de justificação alguma, desde o momento em que, sempre que se tenha realizado conforme à 'lex artis' e tenha tido resultado feliz, não realizará nunca o tipo da lesão corporal.
'O fim de curar exclui a lesão corporal. A vontade de curar, própria dos médicos, é incompatível com o dolo de maus tratos , exigido nos crimes de lesão corporal.'
(...)
A atividade do médico é no sentido de favorecer, não de diminuir o valor que a lei penal tutela. É este o grande critério decisivo da adequação social como princípio da validade geral da exclusão do tipo de ilícito.
O que salva a ação do médico, excluindo o dolo, é a superioridade de seu propósito. Como explica Carlo Fiore (L'Azione Socialmente Adeguata nem Diritto Penale', Nápoles, Morano, 1966, p.140): 'Criterio fondamentale; che la condotta rischiosa abbia nel suo contenuto um valore positivo. E precisamente il rispetto degli stessi beni che essa mete in pericolo'.
'A adequação social exclui o tipo de fato proibido, porque a ação socialmente adequada não realiza a lesão do valor de ato que dá relevância à lesão do bem tutelado e cuja constatação está implícita no juízo de tipicidade." (fls. 31/34).
Nesta linha, presente a finalidade terapêutica e a necessidade de intervenção médica, em virtude dos direitos à saúde, de liberdade, de igualdade e de respeito à dignidade humana, não há que se falar em incidência penal, nem na incidência do artigo 13 do Código Civil. Com efeito, a intervenção médica é hipótese expressamente autorizada e necessária, justificada pelos direitos fundamentais invocados, na linha, aliás, do que concluiu a I Jornada do Conselho da Justiça Federal sobre o Novo Código Civil, conforme o enunciado nº 6: "Art. 13: a expressão 'exigência médica', contida no art.13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente".


Por fim, analiso a questão jurídica sobre a existência ou não de restrição à inclusão das cirurgias de transgenitalização (neocolvulvocosplastia e neofaloplastia) dentre os procedimentos previstos na Tabela de remuneração do SUS, em face dos termos de Resolução do Conselho Federal de Medicina sobre o tema.


Com efeito, aquilo que a inicial requer e se exige deste julgamento não é a discussão fática acerca do caráter experimental ou não das referidas cirurgias. O que se requer para a solução do litígio, isto sim, é decidir se, do ponto de vista jurídico, há óbice para a inclusão destas cirurgias dentre os procedimentos previstos na Tabela SIH-SUS, na forma como referidos na resolução do Conselho Federal de Medicina.


Inicio descrevendo o posicionamento atual do Conselho Federal de Medicina quanto aos referidos procedimentos. Ele está expresso na Resolução nº 1.652/2002, nos seguintes termos: a neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo é cirurgia autorizada, não de caráter experimental, apresentando bom resultado cirúrgico, tanto do ponto de vista estético quanto funcional; já a neofaloplastia ainda apresenta dificuldades técnicas, ficando autorizada somente em caráter experimental.


E continua a Resolução: "as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino poderão ser praticadas em hospitais públicos ou privados, independente da atividade de pesquisa" - neocolpovulvoplastia (art. 6º); "as cirurgias para adequação do fenótipo feminino para masculino só poderão ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa" - neofaloplastia (art. 5º).


A acuidade científica destes termos não se questiona. O que é necessário é fazer uma leitura correta do que dispõe a Resolução. Constata-se, de imediato, a inexistência de qualquer empecilho à realização da neocolpovulvocosplastia em hospitais públicos, sejam eles universitários, aparelhados para a pesquisa científica ou não. Para estes casos, aliás, a procedência do pedido veiculado tem efeitos bastante amplos, pois criará condições financeiras (a remuneração pelo SUS) hoje inexistentes na quase totalidade dos estabelecimentos hospitalares nos casos de alteração do masculino para o feminino.


Já quanto à neofaloplastia, a leitura da Resolução merece maior cuidado. Como entender a Resolução quanto a este procedimento cirúrgico? O que é experimental? A cirurgia de neofaloplastia ou a autorização, do ponto de vista ético-disciplinar, que o Conselho Federal de Medicina concede ou não aos médicos que têm o seu exercício profissional sob fiscalização?


Uma leitura atenta da Resolução impõe a conclusão de que o que é experimental é a autorização, não a cirurgia em si. Com efeito, diz o artigo 2º da Resolução: "Autorizar, ainda a título experimental, a realização de cirurgia do tipo neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo."


A redação é clara: o que é experimental é a autorização, não a cirurgia. Esta, aliás, a interpretação que não só mais se conforma aos termos literais da resolução, como também a recomendada pela bioética, uma vez que dificilmente se sustentaria que o Conselho Federal de Medicina defendesse posição admitindo que seres humanos sejam submetidos a cirurgias experimentais.


A manifestação das autoridades médicas e científicas, vinculadas ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre, instituição de atendimento médico e de pesquisa científica, nacional e internacionalmente respeitada, é precisamente esta.


Disse o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, por sua Presidência, ao responder quesito do MPF sobre a realização de ambas cirurgias:


"1. Preliminarmente, que o procedimento mencionado na alínea a do retrocitado documento, não é do tipo experimental, tanto que sequer tramita, junto à Comissão de Ética em Pesquisa do HCPA, projeto algum no particular (vide documentação anexa). De realce considerar a Resolução nº 1482 do Conselho Federal de Medicina, considera como experimental não a técnica mas e tão somente, a autorização para o seu exercício. A práxis de há muito é conhecida em nível internacional, inclusive no próprio HCPA, onde a equipe do Professor Walter Koff já realizou, com êxito, 44 (quarenta e quatro) procedimentos semelhantes, sendo certo, ademais, que a própria Entidade de Classe não liberaria atividade de tão alta complexidade, sem que houvesse um mínimo de conhecimento e certeza científicas." (fl. 113).


O Comitê de Ética em Pesquisa, por sua vez, manifestou-se:


"O Comitê de Ética em Pesquisa do HCPA, por solicitação da Consultoria Jurídica da Instituição analisou a situação das cirurgias de transgenitalização dos tipos neocolpovulvoplastia e neofaloplastia, quanto aos aspectos assistenciais e de pesquisa envolvidos nestes procedimentos.
(...)
Os procedimentos cirúrgicos utilizados no HCPA para o tratamento de pacientes portadores de transexualismo já estão consagrados na literatura científica mundial. Existem artigos publicados desde a década de 1960 que avaliam estes procedimentos. Estas cirurgias são utilizadas para fins terapêuticos em vários países do mundo.
O item 1 da Resolução 1482/97 do Conselho Federal de Medicina, que estabelece os aspectos deontológicos e práticos a respeito desses mesmos procedimentos autoriza, à título experimental, a realização dos procedimentos de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia como tratamento para os casos de transexualismo. Esta Resolução não caracteriza o procedimento como experimental, mas sim estabelece que a autorização ainda não é dada de forma definitiva.
Com base nas informações científicas disponíveis e nas resoluções que abordam este tema, é possível caracterizar que as cirurgias de transgenitalização dos tipos neocolpovulvoplastia e neofaloplastia não são mais consideradas como experimentais, mas constituem-se em tratamento cirúrgico para os portadores deste tipo de transtorno de identidade de gênero." (Profa. Themis Reverbel da Silveira, Coordenadora CEP/HCPA) (fl. 120, grifei)


Qual a repercussão jurídica da leitura e compreensão corretas da Resolução do CFM, cujos termos são sufragados no pedido da ação civil pública ajuizada pelo MPF?


Acolhido o pedido veiculado na inicial, os hospitais que realizarem os procedimentos cirúrgicos de transgenitalização (atendidas, é claro, as prescrições médicas pertinentes e que apresentarem condições humanas, físicas e matérias compatíveis, como se exige em qualquer procedimento médico), desde que pertencentes ao SUS ou com ele conveniados, terão direito ao pagamento, conforme dispuser a Tabela SIH-SUS. Esta conclusão, registro, não colide em nenhum momento com os termos da Resolução do CFM, que restringe a autorização para a realização da neofaloplastia a hospitais universitários ou hospitais públicos preparados para a pesquisa; o que ela garante é que também estes hospitais universitários ou públicos preparados para a pesquisa terão recursos vindos do SUS tanto no caso da neocolpovulvoplastia quanto no caso da neofaloplastia; para os demais hospitais o pagamento, também pelo SUS, da neocolpovulvoplastia.


Abrangência nacional deste acórdão


Uma das questões processuais debatidas nos autos diz respeito à abrangência do provimento judicial ora concedido: se restrito à competência do órgão prolator (no caso, a jurisdição do Tribunal Regional Federal da 4ª Região) ou passível de eficácia nacional, à vista do pedido expresso veiculado na inicial da presente ação civil pública.


Do ponto de vista processual, a resposta exige posição sobre a constitucionalidade da limitação legal à eficácia da sentença (Lei nº 7.347/85, art. 16) e, acaso afirmada esta premissa, a incidência da norma limitadora diante deste caso concreto.


O Supremo Tribunal Federal discutiu o tema, quando do julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN-MC nº 1.576/UF, j. 16/04/1997), cujo relator foi o Ministro Marco Aurélio. À oportunidade, o tribunal, por maioria, indeferiu a medida liminar e declarou a constitucionalidade da norma limitadora. Posteriormente, o mesmo Ministro Marco Aurélio, então na Presidência do STF, ponderou que tal restrição, ainda que constitucional, não se aplica a provimento de abrangência nacional, prolatado liminarmente por Juízo Federal Substituto, em ação civil pública (Petição 1.984/RS, j. 10/02/2003), dadas certas circunstâncias. Discutia-se a obrigação da Administração não discriminar homossexuais quando dos pedidos de benefícios previdenciários, especialmente nas hipóteses de pensão por morte e auxílio-reclusão. A decisão monocrática presidencial houve por bem confirmar decisão da Presidência deste Tribunal Regional Federal, que também concluiu pela não incidência da limitação naquele caso.


Eis o inteiro teor da decisão:


DECISÃO AÇÃO CIVIL PÚBLICA - TUTELA IMEDIATA - INSS - CONDIÇÃO DE DEPENDENTE - COMPANHEIRO OU COMPANHEIRA HOMOSSEXUAL - EFICÁCIA ERGA OMNES - EXCEPCIONALIDADE NÃO VERIFICADA - SUSPENSÃO INDEFERIDA. 1. O Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, na peça de folha 2 a 14, requer a suspensão dos efeitos da liminar deferida na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, ajuizada pelo Ministério Público Federal. O requerente alega que, por meio do ato judicial, a que se atribuiu efeito nacional, restou-lhe imposto o reconhecimento, para fins previdenciários, de pessoas do mesmo sexo como companheiros preferenciais. Eis a parte conclusiva do ato (folhas 33 e 34): Com as considerações supra, DEFIRO MEDIDA LIMINAR, de abrangência nacional, para o fim de determinar ao Instituto Nacional do Seguro Social que: a) passe a considerar o companheiro ou companheira homossexual como dependente preferencial (art. 16, I, da Lei 8.213/91); b) possibilite que a inscrição de companheiro ou companheira homossexual, como dependente, seja feita diretamente nas dependências da Autarquia, inclusive nos casos de segurado empregado ou trabalhador avulso; c) passe a processar e a deferir os pedidos de pensão por morte e auxílio-reclusão realizados por companheiros do mesmo sexo, desde que cumpridos pelos requerentes, no que couber, os requisitos exigidos dos companheiros heterossexuais (arts. 74 a 80 da Lei 8.213/91 e art. 22 do Decreto nº 3.048/99). Fixo o prazo de 10 dias para implementação das medidas necessárias ao integral cumprimento desta decisão, sob pena de multa diária de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), com fundamento no art. 461, § 4o, do Código de Processo Civil. Entendo inviável determinação do modo como procederá o INSS para efetivar a medida, consoante postulado pelo parquet (item 14, alínea "d"), porquanto configuraria indevida ingerência na estrutura administrativa da entidade. O requerente esclarece que encaminhou a suspensão, inicialmente, ao Presidente do Tribunal Regional Federal da 4a Região e, diante do indeferimento do pleito, vem renová-lo nesta Corte, à luz do artigo 4o da Lei nº 8.437/92, com a redação da Medida Provisória nº 1.984-16, fazendo-o ante a natureza constitucional do tema de mérito em discussão. Assevera que a decisão fere a ordem e a economia públicas. Quanto à primeira, aduz que o ato "possibilita que qualquer pessoa se diga companheiro de pessoa de mesmo sexo e solicite o benefício" (folha 4), prejudicando o funcionamento da máquina administrativa, em face da ausência de fixação de critérios. Argúi, em passo seguinte, a ilegitimidade ativa do Ministério Público para propor a demanda, ao argumento de que o direito envolvido é individual. Registra: "o gozo de benefício previdenciário não é interesse difuso ou coletivo a ser tutelado por ação civil pública" (folha 5). Além disso, ressalta a impossibilidade de conceder-se, à liminar, abrangência nacional, na medida em que os artigos 11 e 110 da Lei nº 5.010/66 e 16 da Lei nº 7.347/85 "restringem a eficácia erga omnes inerente à decisão de procedência em ação civil pública aos limites territoriais da jurisdição do órgão prolator da decisão" (folha 7). A favor desse entendimento, evoca precedente desta Corte. Sustenta a violação ao princípio da separação dos Poderes, apontando que a Juíza substituiu o Congresso Nacional ao reconhecer a união estável ou o casamento entre homossexuais. A lesão à economia pública decorreria do fato de não se ter estabelecido a fonte de custeio para o pagamento do benefício, o que acabaria por gerar desequilíbrio financeiro e atuarial. O ministro Carlos Velloso, então Presidente da Corte, determinou a remessa dos autos à Procuradoria Geral da República, seguindo-se o parecer de folha 89 a 96, em torno do deferimento do pleito de suspensão. O Advogado-Geral da União manifestou-se por meio da peça de folhas 98 e 99. Defende o legítimo interesse da União para ingressar no feito, na qualidade de assistente simples, por ser responsável pelo financiamento do déficit da Previdência Social. O pedido de ingresso restou atendido à folha 98. Em despacho de folha 100, o INSS foi instado a informar se interpôs agravo à decisão, proferida pelo Presidente do Tribunal Regional Federal da 4a Região, que implicara o indeferimento da suspensão. Positiva a resposta da autarquia, sobreveio o despacho de folha 165, mediante o qual foram requisitadas cópias dos acórdãos para anexação ao processo. Desta providência, desincumbiu-se o requerente, conforme se depreende dos documentos de folha 172 a 203. Em 5 de junho de 2001, chamei o processo à ordem e determinei, à luz do princípio do contraditório, fosse dado conhecimento desta medida ao autor da ação civil pública (folha 215). Na defesa de folha 223 a 259, além de aludir-se ao acerto da decisão impugnada, aponta-se a ausência de dano à ordem ou à economia públicas. O Procurador-Geral da República, no parecer de folhas 426 e 427, reitera o pronunciamento anterior. Diante da passagem do tempo, despachei, à folha 429, a fim de que fossem prestadas informações sobre a Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0. O requerente noticia, à folha 451, haver sido julgado procedente o pedido formulado na ação, interpondo-se a apelação, recebida no efeito devolutivo, por isso persistindo o interesse na suspensão. Instei, então, o Instituto a aditar, querendo, o pedido, trazendo aos autos o inteiro teor da sentença proferida. Daí o aditamento de folha 471 a 474, com a notícia de que a peça encontra-se à folha 351 à 423. 2. Extraem-se da Constituição Federal algumas premissas: a - as ações, medidas e recursos de acesso ao Supremo Tribunal Federal nela estão previstos ante a competência definida no artigo 102; b - em se tratando de recurso, tal acesso pressupõe o esgotamento da jurisdição na origem - artigo 102, incisos II e III. Soma-se a esse balizamento outro dado muito importante: de acordo com a jurisprudência reiterada, apenas se admite a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar ação cautelar que vise a imprimir eficácia suspensiva a certo recurso, uma vez não só interposto, como também submetido ao crivo do juízo primeiro de admissibilidade, verificando-se, neste último, a devolução da matéria. Então, há de considerar-se como sendo de excepcionalidade maior a possibilidade de chegar-se à Suprema Corte por meio de pedido de suspensão de medida liminar, sentença ou acórdão - procedimento que ganha contornos de verdadeira ação cautelar -, e, mesmo assim, diante do que, até aqui, está sedimentado acerca da admissibilidade da medida. Tanto quanto possível, devem ser esgotados os remédios legais perante a Justiça de origem, homenageando-se, com isso, a organicidade e a dinâmica do próprio Direito e, mais ainda, preservando-se a credibilidade do Judiciário, para o que mister é reconhecer-se a valia das decisões proferidas, somente atacáveis mediante os recursos pertinentes. Estes, por sinal, viabilizam a almejada bilateralidade do processo, o tratamento igualitário das partes, o que não ocorre com a suspensão de liminar, segurança, tutela antecipada ou qualquer outra decisão. Consubstancia a medida tratamento diferenciado, somente favorecendo as pessoas jurídicas de direito público. Nisso, aqueles que a defendem tomam-na como a atender interesse coletivo, mas deixam de atentar para a dualidade entre o interesse coletivo primário, a beneficiar todos, e o interesse coletivo secundário, ou seja, os momentâneos e isolados da Administração Pública, sempre sujeitos aos ares da política governamental em curso. Assim, toda e qualquer norma ordinária que enseje o acesso direto e com queima de etapas ao Supremo Tribunal Federal deve ser aplicada com a cabível cautela. A aferição da tese conducente à suspensão quer de liminar, de tutela antecipada ou de segurança não prescinde do exame do fundamento jurídico do pedido. Dissociar a possibilidade de grave lesão à ordem pública e econômica dos parâmetros fáticos e de direito envolvidos na espécie mostra-se como verdadeiro contra-senso. É potencializar a base da suspensão a ponto de ser colocado em plano secundário o arcabouço normativo, o direito por vezes, e diria mesmo, na maioria dos casos, subordinante, consagrado no ato processual a que se dirige o pedido de suspensão. Não há como concluir que restou configurada lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas, fazendo-o à margem do que decidido na origem, ao largo das balizas do ato processual implementado à luz da garantia constitucional de livre acesso ao Judiciário. Na prática de todo e qualquer ato judicante, em relação ao qual é exigida fundamentação, considera-se certo quadro e a regência que lhe é própria, sob pena de grassar o subjetivismo, de predominar não o arcabouço normativo que norteia a atuação, mas a simples repercussão do que decidido. Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV do artigo 3o da Carta Federal). Vale dizer, impossível é interpretar o arcabouço normativo de maneira a chegar-se a enfoque que contrarie esse princípio basilar, agasalhando-se preconceito constitucionalmente vedado. O tema foi bem explorado na sentença (folha 351 à 423), ressaltando o Juízo a inviabilidade de adotar-se interpretação isolada em relação ao artigo 226, § 3o, também do Diploma Maior, no que revela o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. Considerou-se, mais, a impossibilidade de, à luz do artigo 5º da Lei Máxima, distinguir-se ante a opção sexual. Levou-se em conta o fato de o sistema da Previdência Social ser contributivo, prevendo a Constituição o direito à pensão por morte do segurado, homem ou mulher, não só ao cônjuge, como também ao companheiro, sem distinção quanto ao sexo, e dependentes - inciso V do artigo 201. Ora, diante desse quadro, não surge excepcionalidade maior a direcionar à queima de etapas. A sentença, na delicada análise efetuada, dispôs sobre a obrigação de o Instituto, dado o regime geral de previdência social, ter o companheiro ou companheira homossexual como dependente preferencial. Tudo recomenda que se aguarde a tramitação do processo, atendendo-se às fases recursais próprias, com o exame aprofundado da matéria. Sob o ângulo da tutela, em si, da eficácia imediata da sentença, sopesaram-se valores, priorizando-se a própria subsistência do beneficiário do direito reconhecido. É certo que restou salientada a eficácia da sentença em todo o território nacional. Todavia este é um tema que deve ser apreciado mediante os recursos próprios, até mesmo em face da circunstância de a Justiça Federal atuar a partir do envolvimento, na hipótese, da União. Assim, não parece extravagante a óptica da inaplicabilidade da restrição criada inicialmente pela Medida Provisória nº 1.570/97 e, posteriormente, pela Lei nº 9.497/97 à eficácia erga omnes, mormente tendo em conta a possibilidade de enquadrar-se a espécie no Código de Defesa do Consumidor. 3. Indefiro a suspensão pretendida. 4. Publique-se. Brasília, 10 de fevereiro de 2003.


A leitura atenta da fundamentação que manteve a eficácia nacional da decisão na ação civil pública revela, dentre outros fundamentos, a prevalência de princípios constitucionais fundamentais (igualdade, não-discriminação) sobre restrições procedimentais que não causam ao Poder Público lesão significativa; também salientou, do ponto de vista processual, que a presença da União no pólo passivo repercute em favor da manutenção da abrangência nacional, bem como o enquadramento da espécie no Código de Defesa do Consumidor.


Com efeito, permito-me alinhar-me e desenvolver, ainda que brevemente, a argumentação trazida pelo então Ministro Presidente do STF.


O processo civil é instrumento para a jurisdição, cuja efetividade é direito fundamental. Sendo assim, sua interpretação deve nortear-se pela realização dos direitos envolvidos. A doutrina processualista, sempre que se ocupa desta questão principiológica, não cansa de sublinhar esta idéia, que é verdadeiro alicerce do sistema processual e sem a qual ele não teria sentido algum, a não ser propiciar injustiça. Daí ter dito o Ministro Presidente que "a aferição da tese conducente à suspensão quer de liminar, de tutela antecipada ou de segurança não prescinde do exame do fundamento jurídico do pedido. Dissociar a possibilidade de grave lesão à ordem pública e econômica dos parâmetros fáticos e de direito envolvidos na espécie mostra-se como verdadeiro contra-senso. É potencializar a base da suspensão a ponto de ser colocado em plano secundário o arcabouço normativo, o direito por vezes, e diria mesmo, na maioria dos casos, subordinante, consagrado no ato processual a que se dirige o pedido de suspensão. Não há como concluir que restou configurada lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas, fazendo-o à margem do que decidido na origem, ao largo das balizas do ato processual implementado à luz da garantia constitucional de livre acesso ao Judiciário. Na prática de todo e qualquer ato judicante, em relação ao qual é exigida fundamentação, considera-se certo quadro e a regência que lhe é própria, sob pena de grassar o subjetivismo, de predominar não o arcabouço normativo que norteia a atuação, mas a simples repercussão do que decidido. Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV do artigo 3o da Carta Federal). Vale dizer, impossível é interpretar o arcabouço normativo de maneira a chegar-se a enfoque que contrarie esse princípio basilar, agasalhando-se preconceito constitucionalmente vedado."


O Ministro Presidente também apontou a inaplicabilidade da restrição espacial inserta no citado artigo 16. Efetuou, conforme percebo, interpretação sistemática, que traz à tona a norma do Código de Defesa do Consumidor, reconhecedor da existência de certos danos que podem ter abrangência nacional e, portanto, exigem decisão com tal abrangência (artigo 93); o teor desta norma, com efeito, revela verdadeiro princípio jurídico processual que objetiva a proteção do direito material, a ser observado em casos onde o provimento judicial requerido é de tal ordem que seu fracionamento implica em injustiça e se mostra inadequado.


Esta é a hipótese dos autos, pois, de fato, a Tabela do SUS é nacional, e a limitação da eficácia à Região Sul do Brasil viria de encontro a muitos princípios fundamentais, dentre os quais a efetividade do processo, a natureza do direito pleiteado, a isonomia entre os cidadãos brasileiros e, inclusive, a própria racionalidade e eficiência administrativas.


O Desembargador Federal João Batista Pinto Silveira teve oportunidade de capitanear acórdão unânime (AC 2000.71.00.009347-0), que confirmou a sentença cuja antecipação de tutela, com abrangência nacional, foi reafirmada no Supremo Tribunal Federal precisamente pela decisão presidencial acima transcrita. Em seu judicioso voto, o relator cuidou da matéria de modo exaustivo e percuciente, razão pela qual a transcrevo agora, no ponto que interessa:


"O Ministério Público Federal busca nesta ação um provimento jurisdicional de abrangência nacional. O INSS, entretanto, se opõe a tal pretensão ao argumento de que a atual redação do art. 16 da Lei n.º 7.347/85 impõe restrições territoriais às decisões tomadas em sede de ação civil pública.
A discussão concernente à abrangência da decisão, ainda em sede liminar, já foi objeto de pronunciamento deste Tribunal, por ocasião do julgamento do Agravo de Instrumento n.º 2000.04.01.044144-0, cuja ementa, da lavra do eminente Des. Federal Luis Carlos de Castro Lugon, ora transcrevo:


CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO E PROCESSO CIVIL. NORMAS CONSTITUCIONAIS. CF, ART. 226, § 3º. INTEGRAÇÃO. HOMOSSEXUAIS. INSCRIÇÃO DE COMPANHEIROS HOMOSSEXUAIS COMO DEPENDENTES NO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INEXISTÊNCIA DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA PARA O CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. TITULARIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. AMPLITUDE DA LIMINAR. ABRANGÊNCIA NACIONAL.LEI N.º 7.347/85, ART. 16, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI N.º 9.494/97.
1. As normas constitucionais, embora soberanas na hierarquia, são sujeitas a interpretação. Afasta-se a alegação de que a espécie cuida de inconstitucionalidade de lei; o que ora se trata é de inconstitucionalidade na aplicação da lei; o que se cuida não é de eliminar por perversa a disposição legal; sim, de ampliar seu uso, por integração. 2. É possível a abrangência de dependente do mesmo sexo no conceito de companheiro previsto no art. 226, § 3º, da Constituição Federal, frente à Previdência Social, para que o homossexual que comprovadamente vive em dependência de outro não fique relegado à miséria após a morte de quem lhe provia a subsistência. 3. Rejeitada foi a alegação de usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal em relação ao controle concentrado da constitucionalidade pela própria Corte Constitucional em reclamação contra a mesma liminar ora telada, sob o fundamento de que a ação presente tem por objeto direitos individuais homogêneos, não sendo substitutiva da ação direta de inconstitucionalidade. 4. A nova redação dada pela Lei n.º 9.494/97 ao art. 16 da Lei n.º 7.347/85, muito embora não padeça de mangra de inconstitucionalidade, é de tal impropriedade técnica que a doutrina mais autorizada vem asseverando sua inocuidade, devendo a liminar ter amplitude nacional, principalmente por se tratar de órgão federal. (DJU 04-07-2001, pgs. 1132/1166) (grifamos).
Quanto ao alcance da sentença proferida em ação civil pública, diz o art. 16 da Lei n.º 7.347/85, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 9.494/97:
Art. 16 - A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
O Código de Defesa do Consumidor, por seu turno, também contém disposição referente à abrangência dos efeitos da sentença proferida em ação civil pública, na mesma redação originária do art. 16 da Lei n.º 7.347/85:
Art. 103 - Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada:
I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo a improcedência por insuficiência de provas, nos termos inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
Não são pacíficas as posições doutrinárias no que concerne à restrição da coisa julgada erga omnes aos limites da competência territorial do órgão julgador. Na análise da questão, a doutrina divide-se em posições antagônicas: de um lado aqueles que compartilham do entendimento de Ada Pellegrini Grinover (Código de Defesa do Consumidor, 6ª ed., 1999, Ed. Forense, Rio de Janeiro), defendendo que a modificação do art. 16 altera os efeitos da coisa julgada restringindo sua abrangência territorial; de outro, aqueles que divergem dessa posição, ao lado do professor Hugo Nigri Mazzilli (A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 12ª ed., 2000, Ed. Saraiva, São Paulo), entendendo que o legislador operou em confusão, pois buscava regular a competência para apreciar a ação e não os reflexos da coisa julgada.
Independentemente da posição que se tome acerca da intenção do legislador, é preciso ter sempre presente que a coisa julgada material não é efeito de um julgado (como o são a ordem, a condenação, a declaração, a desconstituição), e sim, na clássica lição de Liebman, uma qualidade que, num determinado momento cronológico, se agrega àqueles efeitos, tornando-os imutáveis. Essa imutabilidade, que num primeiro momento, já se formara para "dentro" do processo, introjetada perante as partes em face do esgotamento dos prazos recursais, que se convencionou chamar de preclusão máxima (coisa julgada formal), passa, no plano subseqüente, a ter potencializada sua eficácia, vindo esta a se projetar também em face de terceiros, no que se convencionou chamar de efeito erga omnes, próprio da coisa julgada material. Tal projeção ocorre como condição para a plena realização prática do bem da vida assegurado no comando jurisdicional, dado o entrelaçamento das relações interpessoais na sociedade.
A propósito, oportuno que se transcreva a interpretação de Nelson Nery Jr. e Rosa Nery, filiando-se ao entendimento de que o legislador incidiu em equívoco conceitual, registrando que a limitação territorial aos limites da coisa julgada não tem nenhuma eficácia e não pode ser aplicada às ações coletivas. Confundiram-se os limites da coisa julgada erga omnes, isto é, quem são as pessoas atingidas pela autoridade da coisa julgada, com jurisdição e competência, que nada tem a ver com o tema. Pessoa divorciada em São Paulo, é divorciada no Rio de Janeiro. Não se trata de discutir se os limites territoriais do juiz de São Paulo podem ou não ultrapassar seu território, atingindo o Rio de Janeiro, mas quem são as pessoas atingidas pela sentença paulista.
Nelson Nery Junior vai mais longe ainda, afirmando que com o advento do Código de Defesa do Consumidor, que regulou ampla e completamente o instituto da coisa julgada no processo coletivo (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos), o sistema legal que rege o instituto da coisa julgada no processo coletivo passou a ser apenas o CDC, havendo uma revogação tácita dos dispositivos que regulam a matéria na Lei n.º 7.347/85 pela legislação superveniente. Assim, defende o processualista, quando editada a Lei n.º 9.494/97, não mais vigorava o art. 16 da Lei n.º 7.347/85, de modo que ela não poderia ter alterado o que não existia, consignando, ainda, que o equívoco da Lei 9.949/97 demonstra que quem a redigiu, não tem noção, mínima que seja, do sistema processual das ações coletivas (Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante, 7ª ed., 2003, pgs. 1349 e 1350).
Não restam dúvidas de que a nova redação dada ao artigo em comento não primou pela melhor técnica e, no mínimo, confundiu os institutos da competência e da coisa julgada, acabando por ferir a garantia constitucional de tutela dos interesses transindividuais.
Nesse diapasão, a melhor solução para a controvérsia, s.m.j., é a de que a regra do art. 16 da Lei n.º 7.347/85 deve ser interpretada em sintonia com os preceitos contidos no Código de Defesa do Consumidor, entendendo-se que os "limites da competência territorial do órgão prolator" de que fala o referido dispositivo, não são aqueles fixados na regra de organização judiciária, mas, sim, aqueles previstos no art. 93 do CDC. Ou seja, quando o dano for local, isto é, restrito aos limites de uma comarca ou circunscrição judiciária, a sentença não produzirá efeitos além dos próprios limites territoriais da comarca ou circunscrição; por outro lado, quando o dano for de âmbito regional, assim considerado aquele que se estende por mais de um município, dentro do mesmo Estado ou não, ou for de âmbito nacional, estendendo-se por expressiva parcela do território brasileiro, a competência será do foro de qualquer das capitais ou do Distrito Federal, e a sentença produzirá os seus efeitos sobre toda área prejudicada.


Esse tem sido o posicionamento adotado nesta Corte:


PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO. ADEQUAÇÃO DO PROCEDIMENTO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO STF. INEXISTÊNCIA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA A PROPOSITURA DE AÇÃO COLETIVA TENDO COMO OBJETO DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. PRESENÇA DO RELEVANTE INTERESSE SOCIAL. ABRANGÊNCIA NACIONAL DA DECISÃO. LEIS NºS 7.347/85 E 8.078/90. COMPROVAÇÃO DAS ATIVIDADES ESPECIAIS. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. DIREITO ADQUIRIDO. EPI OU EPC. CONVERSÃO DE TEMPO DE SERVIÇO ESPECIAL EM COMUM. ART. 57, § 5º, DA LB E 28 DA LEI N.º 9.711/98.
1. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA em que se discute, como questão prejudicial, sobre a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo não deve ser confundida com a AÇÃO Direta de Inconstitucionalidade. A ADIN, sendo processo de natureza objetiva, em que não há partes (na acepção estrita do termo), a par de cumprir função precípua de salvaguarda do sistema constitucional, tutela direitos abstratamente considerados. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA, de sua vez, mesmo quando tenha por fundamento a inconstitucionalidade de lei ou outro ato normativo do Poder Público, é destinada à proteção de direitos e interesses concretos.
2. O Ministério Público Federal tem legitimidade para de promover AÇÃO CIVIL PÚBLICA visando à proteção de direitos individuais homogêneos, contanto que esteja configurado o interesse social relevante. Precedentes do STJ e do TRF da 4ª Região.
3. A regra do art. 16 da Lei n.º 7.347/85 deve ser interpretada em sintonia com os preceitos contidos na Lei n.º 8.078/90, entendendo-se que os 'limites da competência territorial do órgão prolator', de que fala o referido dispositivo, não são aqueles fixados na regra de organização judiciária, mas, sim, aqueles previstos no art. 93 do Código de Defesa do Consumidor. Assim: a) quando o dano for de âmbito local, isto é, restrito aos limites de uma comarca ou circunscrição judiciária, a sentença não produzirá efeitos além dos próprios limites territoriais da comarca ou circunscrição; b) quando o dano for de âmbito regional, assim considerado o que se estende por mais de um município, dentro do mesmo Estado ou não, ou for de âmbito nacional, estendendo-se por expressiva parcela do território brasileiro, a competência será do foro de qualquer das capitais ou do Distrito Federal, e a sentença produzirá os seus efeitos sobre toda a área prejudicada. (grifamos)
(...)
(AC 2000.71.00.030435-2/RS, 5ª Turma, unânime, Rel. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, DJU 29-10-2002, p. 638)


Na presente ação civil pública, o dano resultante da negativa da Autarquia Previdenciária em protocolar e/ou apreciar os requerimentos de pensão por morte e auxílio-reclusão envolvendo casais homossexuais, tem, por óbvio, amplitude nacional, de modo que a violação ou ofensa ao direito somente poderá ser evitada se a decisão produzir efeito em todo o território nacional.
Outrossim, qualquer outra interpretação, no sentido de restringir a abrangência das decisões em ações civis pública aos limites territoriais de seu órgão prolator, contraria a própria teleologia das ações coletivas, que visam a garantir maior acesso à jurisdição, sem, contudo, sobrecarregar o Poder Judiciário com milhares de ações versando sobre matéria idêntica."


Por fim, impende registrar que esta interpretação sistemática, que afasta a incidência da restrição do artigo 16 da LACP, também foi vencedora neste Tribunal Regional Federal. O Pleno do Tribunal, inclusive, sobre ela se pronunciou, mantendo a abrangência nacional da decisão que obrigou, em Ação Civil Pública ajuizada pelo MPF, o INSS a não discriminar homossexuais. Esta oportunidade surgiu quando foi interposto agravo regimental contra decisão do Juiz Fábio Rosa, então Presidente do TRF - 4ª Região, que manteve a abrangência nacional da decisão, no que foi seguido pela maioria expressiva da Corte (SS 2000.04.01.043181-0).


ANTECIPAÇÃO DE TUTELA


Ao encerrar este voto, analiso o pedido de antecipação de tutela nesta apelação cível, veiculado expressamente pelo MPF em seu recurso. Este pedido foi, inicialmente, indeferido, por maioria, no julgamento de questão de ordem suscitada pela então relatora, Desembargadora Federal Maria de Fátima Labarrère (fl. 703), que restou vencida. A decisão então proferida, em juízo recursal liminar, não vislumbrou a relevância dos fundamentos jurídicos do pedido.


Assentados agora os fundamentos jurídicos desenvolvidos ao longo deste voto, fica plenamente atendido o requisito da relevância do direito invocado, não só como alegação jurídica carregada de verossimilhança (juízo provisório e inicial), mas sim como fundamentação definitiva do juízo de procedência do pedido.


Acresce-se a este requisito, de modo claro, o risco de dano irreparável ou de difícil reparação (art. 273, I, do CPC). Efetivamente, como é unânime em toda a literatura sobre a transexualidade como transtorno de gênero, trata-se de "desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou auto-extermínio" (essa a redação do segundo considerando da Resolução nº 1.652/2002 do Conselho Federal de Medicina). A inicial, ademais, demonstra documentalmente a ocorrência fática desses episódios, bem como do grande e intenso sofrimento a que estão acometidos os indivíduos transexuais, agravado em todos aqueles casos em que a cirurgia se mostra como recurso necessário e indicado.


Outro aspecto que a tramitação deste feito revela de modo palmar, a reforçar a necessidade de antecipação da tutela, é a demora e o postergamento de iniciativa administrativa que atenda ao direito demonstrado e requerido nesta ação civil pública. Por diversas vezes foi determinada a suspensão do feito, aguardando-se a possibilidade de tal desfecho. Todavia, esgotados todos esses prazos e, inclusive, tolerado seu alongamento, ainda não foram praticadas as medidas necessárias.


Deste modo, diante da presença da violação tão intensa de direitos fundamentais tão basilares, bem como do grave risco de danos irreparáveis à vida e à integridade física de cidadãos transexuais, voto pela antecipação da tutela, determinando à União que providencie desde logo as medidas a que foi condenada no dispositivo desta apelação cível, logo abaixo estampado.


Em atenção às alegações da defesa, saliento que:


(1) a norma que estabelece reexame necessário não é óbice à antecipação de tutela contra a União, pois os institutos se referem a finalidades completamente diversas (RESP 913.072/RJ, rel. Ministro Teori Zavascki, j. 12/06/2007);
(2) a sujeição do pagamento de condenação judicial via precatório contra a Fazenda Pública não impede a antecipação de tutela, mormente porque se trata de obrigação de fazer (RESP 770.969/RS, rel. Ministro Castro Meira, j. 03/10/2005);
(3) em casos onde há risco de grave lesão ao direito à saúde e ao direito à vida, o Superior Tribunal de Justiça vai até mais longe, admitindo até o bloqueio de contas públicas (Embargos de Divergência no RESP 770.969);
(4) o perigo de irreversibilidade do provimento antecipado não se aplica quando a falta da prestação de saúde possa causar dano também irreparável (STJ, RESP 408.828, rel. Min. Barros Monteiro)
(5) inexiste óbice à concessão de antecipação de tutela na sentença ou no acórdão (STJ, RESP 473.069, 645.921, 524.017);
(6) não se aplicam as restrições quanto à possibilidade de liminar contra a Fazenda Pública em ações versando prestações sociais essenciais à vida, na linha da Súmula 729 do STF;


Em caso de descumprimento da medida, fixo multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), conforme requerimento do MPF (fl. 51), e previsto no parágrafo 4º do artigo 461 do CPC, aplicável à Fazenda Pública (STJ RESP 201.308, 267.446, 810.017) e no artigo 11 da Lei nº 7.347/85


Para tanto, conforme requerimento do Ministério Público Federal, deverá ser intimado pessoalmente o Secretário de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde, com endereço profissional junto à Esplanada dos Ministérios, Bloco G, 9º andar, na Capital Federal.


DISPOSITIVO


Tendo em vista que os direitos fundamentais da igualdade, da proibição de discriminação por motivo de sexo, da liberdade, do livre desenvolvimento da personalidade, da privacidade, do respeito à dignidade humana, bem como o direito à saúde, obrigam a União a não excluir da lista de procedimentos médicos pagos pelo SUS os tratamentos referidos em favor de transexuais, fica a União condenada:


(1)
a promover, no prazo de 30 dias, todas as medidas apropriadas para possibilitar aos transexuais a realização, pelo Sistema Único de Saúde, de todos os procedimentos médicos necessários para garantir a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, conforme os critérios estabelecidos na Resolução nº 1.652/2002, do Conselho Federal de Medicina;


(2)
a editar, no prazo máximo de 30 dias, ato normativo que preveja a inclusão, de modo expresso, na Tabela de Procedimentos remunerados pelo Sistema Único de Saúde (Tabela SIH-SUS), de todos os procedimentos cirúrgicos necessários para a realização da cirurgia nominada no item anterior, bem como remunere os hospitais pelos procedimentos realizados em conformidade com a citada Resolução.


Deixo de condenar a União em honorários advocatícios (STJ, RESP 493.823).


Ante o exposto, dou provimento ao apelo do Ministério Público Federal, para o fim de julgar procedente o pedido, nos termos acima indicados.



























Juiz Federal Roger Raupp Rios
Relator


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